Dia da Água: sociedade se mobiliza para torneira não secar
Edison Urbano ainda estranha ser chamado de professor, mesmo quando está diante de uma turma em uma sala de aula em um centro cultural na zona norte de São Paulo.
Na quinta-feira, ele ensinava moradores da região a captar água da chuva
para usar se a torneira secar - algo comum em muitas partes da capital
paulista desde meados do ano passado, quando foi aplicada uma diminuição
da pressão na rede de abastecimento.
Urbano aprendeu por conta própria a fazer uma minicisterna com tonéis,
tubos de PVC e telas de mosquito para coletar, filtrar e armazenar a
água da chuva.
Há cinco meses, dedica-se quase integralmente a ensinar como montar
este sistema como um dos coordenadores do Movimento Cisterna Já, uma das
várias organizações sociais criadas em São Paulo desde que a água começou a faltar, no ano passado.
Os reservatórios baixaram a níveis inéditos e, neste domingo, o Estado passa pelo segundo Dia Mundial da Água - celebrado todo 22 de março - consecutivo em meio a uma crise hídrica sem precedentes.
"Quis agir para reverter ou amenizar a situação. Temo que, sem água, a gente acabe em uma guerra civil, porque vai faltar alimento também. É esse medo que me move", afirma Urbano.
"Já o que me move é o desespero", diz a psicóloga Camila Pavanelli,
autora do Boletim da Falta D’Água, um blog em que ela reúne e comenta em
postagens semanais as mais recentes informações sobre a crise hídrica.
Esse trabalho
começou em outubro passado, quando Pavanelli decidiu listar em um post
no Facebook o que havia lido sobre o assunto. Em meio a curtidas e
compartilhamentos, também vieram pedidos para que disponibilizasse a
pesquisa de uma forma que fosse mais fácil encontrá-la. Para quem já
tinha um blog pessoal, fazer outro sobre a falta de água foi natural.
"Fazer o blog me faz sentir viva. Não cogito morar em São Paulo e não discutir este problema", diz Pavanelli.
Sinal de alerta
Estas iniciativas são recentes em São Paulo. A cidade já tinha ONGs voltadas para temas como moradia, combate à violência, mobilidade, educação e saúde, entre outros.
Estas iniciativas são recentes em São Paulo. A cidade já tinha ONGs voltadas para temas como moradia, combate à violência, mobilidade, educação e saúde, entre outros.
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Mas tamanha mobilização social em torno da água é novidade, porque “só
agora se faz necessária”, como explicou Pablo Ortellado, professor de
Gestão de Políticas Públicas da USP, em aula sobre a crise hídrica
realizada no fim de fevereiro no vão do Museu de Arte de São Paulo
(Masp), palco de nove em cada dez manifestações na região central da
cidade.
O primeiro alerta soou em dezembro de 2013, quando choveu 72% abaixo do normal. Aquele foi o verão mais quente
desde 1943, quando começaram as medições. Nos dois meses seguintes, a
média de chuvas foi 66% e 64% menor, respectivamente, fazendo com que
São Paulo enfrentasse a estiagem mais intensa desde o início do registro
de chuvas, em 1930.
Em fevereiro de 2014, o nível do Sistema Cantareira, que abastece 6,2
milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo, atingiu 14,6%, o
mais baixo desde sua criação, em 1974.
A Sabesp, empresa
de abastecimento de São Paulo, informou à BBC Brasil que vem realizando
uma série de medidas para ampliar a disponibilidade de água e reduzir a
dependência da região metropolitana do Cantareira. Em comunicado, a
empresa ainda afirma "seguir rigorosamente as determinações de órgãos
reguladores".
Uma destas medidas foi a autorização para usar duas cotas do volume
morto do Cantareira, nome dado à água que ficava abaixo do nível de
captação. Mas, na ausência de chuvas capazes de recompor o sistema, seu
nível continuou a baixar a patamares inéditos.
Mobilização
No entanto, para Ortellado, existe uma percepção por parte de alguns de que as autoridades não agiram de modo adequado em relação à crise, o que teria catalisado a mobilização social em torno da água.
No entanto, para Ortellado, existe uma percepção por parte de alguns de que as autoridades não agiram de modo adequado em relação à crise, o que teria catalisado a mobilização social em torno da água.
"Se as pessoas acreditam que não é possível contar com o governo, isso cria um sentimento de urgência que faz a sociedade civil agir por conta própria, usando suas habilidades em prol desta causa", afirma Ortellado.
Para a urbanista Marussia Whately, isso significa coordenar o trabalho
de mais de 40 ONGs reunidas pela Aliança pela Água, organização criada
em outubro passado para cobrar ações do governo, elaborar projetos para
atenuar o impacto da falta de água e informar a população de seus
desdobramentos.
Especializada em gestão de recursos hídricos, ela já atuou como
consultora de ONGs, como a Imazon e o Instituto Socioambiental, e à
frente da Aliança Pela Água tornou-se uma das principais vozes da
mobilização da sociedade civil em torno da crise.
"Tínhamos organizações muito dispersas. A Aliança cria o espaço para elas interagirem e criarem uma agenda mínima de ações
e propostas, além de uma força-tarefa para monitorar o respeito aos
direitos dos cidadãos e impedir um retrocesso das conquistas", diz
Whately.
Para ela, o fato de São Paulo passar por uma situação sem precedentes
torna a solução ainda mais complexa, na qual a participação de cidadãos é
imprescindível.
"O debate não pode ficar restrito ao que a Sabesp planeja fazer. O problema vai muito além das represas”, diz Whately.
"Temos que engajar a sociedade e fazer com que as pessoas revejam sua
postura política e seus hábitos. Por ser uma crise grave, a solução não
virá de um único ator."
Minicisterna
Urbano diz acreditar que está fazendo sua parte com os cursos sobre a minicisterna. Nesta semana, ele deu dois dias de aula para uma turma de 20 pessoas, entre jovens, adultos e idosos, que moram na Zona Norte de São Paulo, uma das regiões mais afetadas pela falta de água.
Urbano diz acreditar que está fazendo sua parte com os cursos sobre a minicisterna. Nesta semana, ele deu dois dias de aula para uma turma de 20 pessoas, entre jovens, adultos e idosos, que moram na Zona Norte de São Paulo, uma das regiões mais afetadas pela falta de água.
Primeiro, Urbano ensina a teoria, que inclui conceitos de sustentabilidade, saúde pública
e hidrologia, enquanto vai construindo a minicisterna diante dos
alunos. “Não fiquem esperando uma ação do governo. Tomem uma atitude,
porque é nossa saúde que está em risco", diz para a turma.
Urbano criou este sistema por necessidade. Técnico em eletrônica, ele
viu seu trabalho minguar com a "chegada dos aparelhos da China". Acabou
demitido e, com dificuldade para conseguir um emprego, decidiu criar
formas de economizar dinheiro.
Inventou um aquecedor de água com energia solar, um sistema de horta
caseira e uma série de outros projetos que passou a divulgar por meio do
site Sempre Sustentável, enquanto também dava cursos.
No ano passado, aceitou a sugestão de um amigo, o engenheiro Guilherme
Castagna, de adaptar a minicisterna de acordo com as normas técnicas de
reuso de água e ensinar como construí-la. Cinco meses depois, exibe com
orgulho as fotos enviadas por ex-participantes do curso com suas
próprias minicisternas.
"Fico muito grato. Sinto que estou fazendo alguma coisa. Se você reunir
todas as minicisternas já feitas, vira uma cisterna gigante que eu não
conseguiria construir sozinho", diz ele.
Já Camila Pavanelli diz que contribui para sanar a crise ao organizar a
"loucura de informações" em torno da crise hídrica. No início, ela
publicava seu boletim diariamente, mas, desde o início do ano, mudou a
tática. Passou a reunir reportagens e documentos por meio de uma conta
no Twitter e a dedicar o domingo e parte da segunda-feira a escrever um
post semanal.
"Não existe um interesse em se informar e há uma dificuldade em
perceber que faltam políticas públicas para a água,assim como ocorre com
a violência, por exemplo. Quero que as pessoas se mobilizem mais",
afirma Pavanelli.
"Seria arrogante pensar que vou conseguir fazer isso. Tem quem me
critique. Mas também há muita gente que me agradece por usar meu tempo
para fazer este trabalho."
Desafios
Pablo Ortellado, da USP, diz que a mobilização social é importante para canalizar a insatisfação da sociedade civil e impedir que ela gere uma "selvageria, com quebra-quebra e saque de água", como ocorreu em Itu, no interior de São Paulo, no ano passado. No entanto, também afirma que as organizações criadas em torno da crise hídrica enfrentam algumas dificuldades.
Pablo Ortellado, da USP, diz que a mobilização social é importante para canalizar a insatisfação da sociedade civil e impedir que ela gere uma "selvageria, com quebra-quebra e saque de água", como ocorreu em Itu, no interior de São Paulo, no ano passado. No entanto, também afirma que as organizações criadas em torno da crise hídrica enfrentam algumas dificuldades.
"É difícil mobilizar a população quando a insatisfação está mal
distribuída pela cidade, já que falta água em alguns bairros e não em
outros. E, como nunca vivemos uma crise assim, falta um grupo de
referência, com legitimidade para mobilizar, como ocorre com outras
questões sociais", afirma o especialista.
"As pessoas só vão para rua quando confiam nas organizações que se
manifestam por isso. É importante que estes grupos comecem a construir
essa legitimidade para representar a insatisfação da população."
Em meio à crise e a mobilização provocada por ela, surgiram boas
notícias. Chuvas acima da média histórica em fevereiro fizeram o nível
dos principais sistemas que abastecem São Paulo voltar a subir.
Atualmente, os reservatórios do Cantareira estão em 16%. Com isso, a
Sabesp afirmou que a região metropolitana está livre de racionamento até
o segundo semestre.
No entanto, Urbano, do Cisterna Já, diz ter "plena consciência de que a
situação vai piorar” -opinião compartilhada por Whately, da Aliança
pela Água. "Vamos chegar à estação da seca numa situação igual ou pior
do que no ano passado, porque as represas estarão com um nível mais
baixo”, diz Whately.
O desafio para estas organizações agora é conseguir mobilizar a
população, já que o interesse pelo tema diminui diante de um aparente
risco menor de restrição no abastecimento. O Movimento Cisterna Já teve
de cancelar um curso, porque o número de inscritos foi insuficiente. Por
sua vez, o Boletim da Falta D’Água, que chegou a ter posts
compartilhados 1,5 mil vezes, hoje não atinge 200.
"Ninguém mais quer saber de falta de água. Não consegui nem convencer
meus vizinhos a instalar uma cisterna no prédio", diz Pavanelli, que
ainda assim não pretende abandonar o blog.
"Sinto-me um fracasso completo, mas isso me motiva. Outro dia,
encontrei um vídeo dizendo que o Cantareira está cheio e que a crise é
uma farsa. Foi visto por mais de 1 milhão de pessoas. Enquanto isso
existir, é sinal de que preciso continuar. Se eu não fizer, quem vai
fazer?"
Urbano planeja aumentar o número de cursos gratuitos para driblar a falta de interesse e aumentar a divulgação do projeto.
Por sua vez, Whately se diz otimista: "Trabalho há vários anos com a
questão da água e finalmente começo a ver pessoas sabendo que Cantareira
não é apenas o nome de uma serra, revendo seus hábitos e mais ligadas
em um assunto tão importante. Ainda temos mais dois anos de crise pela
frente pelo menos. A mobilização só começou."
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