Eu
tenho plena consciência de que falar de política ou de assuntos que tocam
interesses político-partidários é sempre complicado. É que esses temas sempre
comprometem a capacidade das pessoas de verem as coisas de um ponto de vista
racional. Ou seja, não dá para argumentar com quem está apaixonado.
E é
de paixão mesmo que falo. Ou seja, de um determinado sentimento que nos
compromete com determinado resultado, independentemente do tipo de processo
argumentativo que autoriza ou desautoriza a conclusão.
Não
acho que isso seja mau, aliás. A vida é feita de paixões. Racionalidade pura ia
somente fazer com que tudo se tornasse chato e cartesiano, inabilitando-nos de
realizar leitura emocional acerca das coisas que nos cercam.
Agora,
convenhamos, tudo tem de ter um limite. Ou seja, é completamente válido se
apaixonar por uma causa, por um objetivo ou uma determinada maneira de ver o
mundo. Todavia, permitir que essa paixão nos faça completamente cegos é um
negócio tremendamente nocivo. E a coisa vai ainda além quando o sujeito cego
faz questão de impor a sua cegueira aos outros e se convence que todo mundo que
não a compartilha é um cretino e que o mundo está em risco por causa disso.
Bom,
eu estou escrevendo sobre isso por causa da enorme quantidade de nonsense escrita a respeito do
julgamento do mensalão. E ainda pior: existe uma tal repetição mântrica de
raciocínios tortos, tudo como se a estupidez repetida à infinidade pudesse se
tornar lógica ou verossímil.
Eu
compreendo, por um outro lado, que o julgamento em questão constitui um dos
capítulos mais tristes da democracia brasileira. E de mais a mais, constitui
episódio humilhante para um monte de gente muito séria que se agregou num
determinado momento histórico em torno de bandeiras importantes, especialmente
a falar contra a corrupção.
Todavia,
ainda que a coisa seja assim, há de se convir, os ouvidos de todos os demais
não podem ser convertidos em latrinas, com todo o respeito. E isso lhes digo da
posição de quem lê acerca de direito penal há quase vinte anos e, por não ter
lido o processo, não consegue dizer se há culpados ou inocentes, se o
julgamento se dá com ou sem provas ou fazer qualquer uma das demais afirmações
que tem sido repetidas por aí.
Digo,
ainda, que há muito menos especialistas na teoria do domínio do fato e do
aparato organizado de poder do que o número de pessoas a professar opiniões na
imprensa e nas redes sociais. E de mais a mais, cuidam-se de teorias complexas
e que precisam ser lidas com todo o cuidado e compreendidas após muita
reflexão. E o que tem de gente que nunca abriu um livro de direito penal e está
por aí a se dar de entendido a respeito dessas construções teóricas é realmente
de espantar.
Dentre
tudo o que se disse, falo do meu primeiro raciocínio torto preferido. É o que
aponta o julgamento do mensalão a dizer que importará modificação no sistema de
justiça de modo que viabilizada a condenação de inocentes. Ou seja, os
interlocutores apaixonados fazem de conta que os ataques ao julgamento não mais
se dão a defender os condenados, mas por causa de suposta preocupação com os
resultados que serão sofridos futuramente pelos cidadãos.
Acontece
que o raciocínio encerra duas falácias evidentes. A primeira é a clássica petitio principii, falácia na qual se
arranca de uma premissa não provada. No caso, refiro-me à improvada – e nessa
altura desprovada pela maioria da Corte Suprema – tese de inocência dos
acusados.
A
segunda falácia à qual me refiro é um non
sequitur clássico. Ou seja, conclusão falsa mesmo. Vejam que o julgamento
do mensalão, com todo o respeito aos que entendem em contrário, no que concerne
ao exame de provas foi apenas mais do mesmo.
Ou
seja, juntou-se o que havia nos autos por premissas e lançou-se uma conclusão.
Algumas a acolher as proposições condenatórias do relator e outros a absolver
deterinados sujeitos. Isso é o que se vem fazendo há muitos anos em uma série
de julgamentos levados a efeito em uma série de tribunais e qualquer um que já
tenha acompanhado qualquer outro processo sabe que isso é verdade. E ainda para
além disso, somente quem não conhece nada de direito penal é capaz de afirmar
que o uso da teoria do domínio do fato é grande novidade.
A
segunda das tortices, também repetida por mantra, é reclamação de que somente
os PTs foram julgados e os PSDBs esquecidos, tudo por causa do que se chamou
“Mensalão Mineiro”. Há aí outra falácia comum, conhecida por “eu estou sujo, mas ele está imundo”. Com
os meus estagiários brinco que essa falácia é a do “dois tortos não fazem um
direito”. Ou seja, ainda que os outros tenham feito coisa pior, não há
justificativa a que não se julguem nossos malfeitos na medida da justiça. Em
resumo, se os PSDBs fizeram ou não, há de se lhes dar julgamento e se isso não
houver há erro. Agora, havendo ou não julgamento dos PSDBs, pouco importa para
o julgamento dos PTs.
A
terceira das tortices, por incrível que pareça, também encerra outra falácia
clássica. Falo do argumentum ad
misericordium, a dizer que os condenados são uns coitados perseguidos por
determinados grupos de mídia e que isso foi o decisivo à sua condenação.
Não
quero em nenhum momento desprezar o papel da imprensa nesse julgamento, nem dos
que foram a favor da condenação e nem dos que foram pela absolvição. Agora, é
difícil falar de coitadismo em caso no qual os principais envolvidos tem
ligações com as mais altas esferas de poder do país, foram defendidos pelos
advogados mais caros do país – e talvez do mundo - e que se fala de dinheiro
transitando nas casas de cifras que, ao menos para mim, são difíceis de ver o
que representam em quantidade de cédulas. Também acho muito difícil de me
convencer tenha havido qualquer tipo de massacre ideológico no julgamento, dado
que a maioria – a maciça maioria, diga-se – dos juízes alçou-se ao posto por
indicação do partido político ao qual os acusados maiores estão ligados. Não
fosse isso bastante, o mesmo partido foi o que indicou o acusador.
A
última tortice – a minha preferida – é a que envolveu o professor Claus Roxin,
pensador por quem tenho especial predileção, e acerca da qual já escrevi
abaixo. É que nesse particular, afora duas falácias há também uma contradição.
Começo
pela última: veja-se que se de uma parte há gritaria de que os condenados foram
e são perseguidos pela imprensa, a lambança envolvendo o doutrinador alemão foi
patrocinada pela Folha, matéria que constituiu, na minha opinião, exemplo do
pior tipo de jornalismo. A entrevista em questão está linkada abaixo, motivo pelo qual não repito.
Mas
vamos às falácias. A primeira delas é a da pergunta “embarrigada”, também
conhecida pelo nome chique de recurso à
pergunta complexa. Ou seja, faço uma afirmação seguida de uma indagação.
Então, quando recebo resposta acerca da pergunta, crio presunção de que o
respondente concorda com a afirmação. Exemplo: os juízes do Supremo Tribunal Federal julgaram com base em pressões da
imprensa. O que o senhor acha de juízes que julgam por força de pressão
externa?
Daí
adiante, alakazam: como o professor
alemão respondeu que julgamentos realizados com base na pressão da imprensa são
ruins, consegue-se a manchete de que o doutrinador criticou o Supremo. Será que
pode haver cretinice maior que essa? E eu lhes digo isso com bastante grau de
certeza que Roxin sequer sabe para que lado é Brasília e muito menos no que
consistiu o julgamento do mensalão.
A
outra falácia que quero apontar é tão covarde quanto a primeira. É o clássico
apelo à autoridade. Ou seja, como não consigo provar determinado ponto de
vista, digo que determinado sujeito – melhor e mais preparado que eu – entende
que a coisa toda funciona do jeito como penso. E se a tal autoridade pensa como
penso é mesmo outro problema.
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