O Globo e o reconhecimento do “erro” ao apoiar a ditadura
O Globo se permite tirar férias no pecado, para depois aceitar o perdão oferecido pela luz sagrada da História.
Em editorial publicado ontem, o jornal O Globo admitiu um “erro” cometido décadas atrás: seu apoio ao golpe militar de 1964. Tal declaração surge no ensejo das manifestações populares de junho 2013 que cantaram em alto e bom som a relação amistosa dos veículos de comunicação Globo com o golpe. O jornal afirma que já havia a avaliação interna de que foi mesmo um “erro”, e se planejava um texto de reconhecimento desta falta, e as ruas confirmaram a necessidade deste reconhecimento.
O texto publicado não só é “histórico”, no sentido de um fato importante, como é uma aula sobre história. Ou melhor, sobre teoria da história. Faz perceber que o conceito de história ainda está engatinhando, e que a história da ditadura brasileira ainda está por ser digerida pela sociedade, que é incapaz de lidar com ela, de olhar na cara do monstro e entender que ela faz parte de si, do seu passado, e de certa forma também do seu presente. Digerir este trauma é importante para mudar no presente, porque o passado é só culpa e ressentimento.
A iniciativa de O Globo é importante: seu editorial é melhor que o silêncio, melhor que as menções à “ditabranda”, ideia da Folha de São Paulo que, obviamente, não colou. Todo mundo tenta se resolver com a lembrança do passado de algum jeito: negação jurídica, invenção romântica, elipse argumentativa, aceitação patológica. “Somente algo que continua a machucar permanece na memória”, escreveu o teórico Jan Assmann. “Muitas vezes, no estudo desse período, a gente substitui a História pela Memória”, afirmou o historiador Benito Bisso. “Se todo mundo que diz que estava na passeata dos 100 mil realmente estivesse, seria a passeata do 1 milhão”.
Para sair dessa situação em que fantasmas assombram e o passado puxa o pé da cama – o cenário do horror se apresenta em cantigas de rua: “A verdade é nua e crua, a Globo apoiou a ditadura” – é necessária uma operação complexa. Surge, então, uma personagem salvadora, um eixo no qual pode deslanchar o trem do sentido do passado. Surge a História (com H maiúsculo), algo superior, metafísico, transcendente, que tem a força de corrigir o passado, pois a História é duas vezes citada como uma “Luz” que faz ver o “erro”. Parece uma reedição do Saulo bíblico ao encontrar a luz do Senhor que o faz mudar de nome, parar de perseguir cristãos, enfim, a luz que faz ver o erro. O Globo se permite tirar férias no pecado, para depois aceitar o perdão oferecido pela luz sagrada da História, em nome do “valor absoluto da democracia”, uma verdade revelada que “só pode ser salva por si mesma”. Esta aceitação penitente justifica e dá sentido para ações que foram cometidas no passado e são incômodas no presente. Toda a operação é intermediada pela História com H maiúsculo, tal qual na história de Saulo-Paulo em que há um Senhor com S maiúsculo.
A democracia é qualquer coisa menos absoluta. Ela é relativa. A prova são os crimes cometidos em seu nome durante a própria ditadura (e os crimes cometidos na atual democracia?), independentemente da Guerra Fria, do H maiúsculo, do “contexto” e outros elementos que o texto do jornal elenca para justificar e dar sentido à lembrança dolorida e vergonhosa do passado. De todas as formas de relacionamento com o passado, O Globo assume a curva entre a culpa e o perdão, esta brilhante invenção cristã. Por 50 anos, o jornal percorreu uma elipse no “erro”, mas agora reconhece tal erro na Luz da História e pretende reencaminhar-se no Absoluto da Democracia. Talvez, tal qual Saulo-Paulo, o jornal também tivesse que mudar de nome: de “O Globo” para “A Elipse”.
Do outro lado, na Esquerda, também é a História que absolve. Pode-se perceber o eco brasileiro das palavras de Rubachov, revolucionário russo fictício de Arthur Koestler:
A política pode ser relativamente limpa nos espaços em que a história toma fôlego; nas curvas críticas não há outra regra possível além da velha regra: o fim justifica os meios. Introduzimos o neomaquiavelismo neste país; os outros, as ditaduras contra-revolucionárias, nos imitaram canhestramente. Fomos neomaquiavélicos em nome da razão universal – essa foi a nossa grandeza; os outros, em nome do romantismo nacional, que é o seu anacronismo. Eis por que no fim seremos absolvidos pela História: mas eles, não…Esta Mestra da Vida benevolente que é a História oferece perdão a todos que a ela recorrem, mas seus devotos sempre discordam sobre o perdão do outro. Isto está claro no texto do Globo também: há um claro perdão do apoio ao golpe de 64, oferecido pelo “contexto”, que torna compreensível as ações do passado; mas o erro parece repousar no pecado dos outros, os comunistas. O jornal se perdoa por apoiar a ditadura, mas seu discurso parece repousar no erro do outro: Jango e a “república sindical”, que são o “contexto histórico” que permitiram o “erro”. O Globo se permite o perdão, mas pouco faz pela reabilitação do outro. Tanto em Rubachov como no Globo, se a História é o perdão, o inferno são os outros.
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