BRASIL ESPIONADO – EUA espionaram milhões de e-mails e ligações de brasileiros
Reportagem de GLENN GREENWALD, ROBERTO KAZ E JOSÉ CASAD/Jornal O GLOBO
RIO
– Na última década, pessoas residentes ou em trânsito no Brasil, assim
como empresas instaladas no país, se tornaram alvos de espionagem da
Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (National Security
Agency – NSA, na sigla em inglês). Não há números precisos, mas em
janeiro passado o Brasil ficou pouco atrás dos Estados Unidos, que teve
2,3 bilhões de telefonemas e mensagens espionados
É
o que demonstram documentos aos quais O GLOBO teve acesso. Eles foram
coletados por Edward Joseph Snowden, técnico em redes de computação que
nos últimos quatro anos trabalhou em programas da NSA entre cerca de 54
mil funcionários de empresas privadas subcontratadas – como a Booz Allen
Hamilton e a Dell Corporation.
No
mês passado, esse americano da Carolina do Norte decidiu delatar as
operações de vigilância de comunicações realizadas pela NSA dentro e
fora dos Estados Unidos. Snowden se tornou responsável por um dos
maiores vazamentos de segredos da História americana, que abalou a
credibilidade do governo Barack Obama.
Os
documentos da NSA são eloquentes. O Brasil, com extensas redes públicas
e privadas digitalizadas, operadas por grandes companhias de
telecomunicações e de internet, aparece destacado em mapas da agência
americana como alvo prioritário no tráfego de telefonia e dados (origem e
destino), ao lado de nações como China, Rússia, Irã e Paquistão. É
incerto o número de pessoas e empresas espionadas no Brasil. Mas há
evidências de que o volume de dados capturados pelo sistema de filtragem
nas redes locais de telefonia e internet é constante e em grande
escala.
Criada
há 61 anos, na Guerra Fria, a NSA tem como tarefa espionar comunicações
de outros países, decifrando códigos governamentais. Dedica-se, também,
a desenvolver sistemas de criptografia para o governo.
A
agência passou por transformações na era George W. Bush, sobretudo
depois dos ataques terroristas em Nova York e Washington, em setembro de
2001. Tornou-se líder em tecnologia de Inteligência aplicada em radares
e satélites para coleta de dados em sistemas de telecomunicações, na
internet pública e em redes digitais privadas.
O
governo Obama optou por reforçá-la. Multiplicou-lhe o orçamento, que é
secreto como os de outras 14 agências americanas de espionagem. Juntas,
elas gastaram US$ 75 bilhões no ano passado, estima a Federação dos
Cientistas Americanos, organização não governamental especializada em
assuntos de segurança.
Outro programa amplia ação
A
NSA tem 35,2 mil funcionários, segundo documentos. Eles informam também
que a agência mantém “parcerias estratégicas” para “apoiar missões” com
mais de 80 das “maiores corporações globais” (nos setores de
telecomunicações, provedores de internet, infraestrutura de redes,
equipamentos, sistemas operacionais e aplicativos, entre outros).
Para
facilitar sua ação global, a agência mantém parcerias com as maiores
empresas de internet americanas. No último 6 de junho, o jornal “The
Guardian” informou que o software Prism permite à NSA acesso aos
e-mails, conversas online e chamadas de voz de clientes de empresas como Facebook, Google, Microsoft e YouTube.
No
entanto, esse programa não permite o acesso da agência a todo o
universo de comunicações. Grandes volumes de tráfego de telefonemas e de
dados na internet ocorrem fora do alcance da NSA e seus parceiros no
uso do Prism. Para ampliar seu raio de ação, e construir o sistema de
espionagem global que deseja, a agência desenvolveu outro programas com
parceiros corporativos capazes de lhe fornecer acesso às comunicações
internacionais.
Um
deles é o Fairview, que viabilizou a coleta de dados em redes de
comunicação no mundo todo. É usado pela NSA, segundo a descrição em
documento a que O GLOBO teve acesso, numa parceria com uma grande
empresa de telefonia dos EUA. Ela, por sua vez, mantém relações de
negócios com outros serviços de telecomunicações, no Brasil e no mundo.
Como resultado das suas relações com empresas não americanas, essa
operadora dos EUA tem acesso às redes de comunicações locais, incluindo
as brasileiras.
Ou
seja, através de uma aliança corporativa, a NSA acaba tendo acesso aos
sistemas de comunicação fora das fronteiras americanas. O documento
descreve o sistema da seguinte forma: “Os parceiros operam nos EUA, mas
não têm acesso a informações que transitam nas redes de uma nação, e,
por relacionamentos corporativos, fornecem acesso exclusivo às outras
[empresas de telecomunicações e provedores de serviços de internet].”
Companhias
de telecomunicações no Brasil têm esta parceria que dá acesso à empresa
americana. O que não fica claro é qual a empresa americana que tem sido
usada pela NSA como uma espécie de “ponte”. Também não está claro se as
empresas brasileiras estão cientes de como a sua parceria com a empresa
dos EUA vem sendo utilizada.
Certo
mesmo é que a NSA usa o programa Fairview para acessar diretamente o
sistema brasileiro de telecomunicações. E é este acesso que lhe permite
recolher registros detalhados de telefonemas e e-mails de milhões de
pessoas, empresas e instituições.
Para
espionar comunicações de um residente ou uma empresa instalada nos
Estados Unidos, a NSA precisa de autorização judicial emitida por um
tribunal especial (a Corte de Vigilância de Inteligência Estrangeira),
composto de 11 juízes que se reúnem em segredo. Foi nessa instância, por
exemplo, que a agência obteve autorização para acesso durante 90 dias
aos registros telefônicos de quase 100 milhões de usuários da Verizon, a
maior operadora de telefonia do país. Houve uma extensão do pedido a
todas as operadoras americanas – com renovação permanente.
Fora
das fronteiras americanas, o jogo é diferente. Vigiar pessoas, empresas
e instituições estrangeiras é missão da NSA, definida em ordem
presidencial (número 12333) há três décadas.
Na
prática, as fronteiras políticas e jurídicas acabam relativizadas pelos
sistemas de coleta, processamento, armazenamento e distribuição das
informações. São os mesmos aplicados tanto nos EUA quanto no resto do
mundo.
Todo tipo de informação armazenada
Desde
2008, por exemplo, o governo monitora com autorização judicial hábitos
de navegação na internet dentro do território americano. Para tanto,
exibiu com êxito um argumento no tribunal especial: o estudo da rotina
online de “alvos” domésticos proporcionaria vigilância privilegiada
sobre a prática online cotidiana de estrangeiros. Assim, uma pessoa ou
empresa “de interesse” residente no Brasil pode ter todas as suas
ligações telefônicas e correspondências eletrônicas – enviadas ou
recebidas – sob vigilância constante. A agência armazena todo tipo de
registros (número discado, tronco e ramal usados, duração, data hora,
local, endereço do remetente e do destinatário, bem como endereços de IP
– assim como sites visitados). E faz o mesmo com quem estiver na outra
ponta da linha, ou em outra tela de computador.
Começa
aí a vigilância progressiva pela rede de relacionamento de cada
interlocutor telefônico ou destinatário da correspondência eletrônica
(e-mail, fax, SMS, vídeos, podcasts etc.). A interferência é sempre
imperceptível: “Servimos em silêncio” – explica a inscrição numa placa
de mármore exposta na sede da NSA em Washington.
Espionagem
nesse nível, e em escala global, era apenas uma suspeita até o mês
passado, quando começaram a ser divulgados os milhares de documentos
internos da agência coletados por Snowden dentro da NSA. Desde então,
convive-se com a reafirmação de algumas certezas. Uma delas é a do fim
da era da privacidade, em qualquer tempo e em qualquer lugar.
Principalmente em países como o Brasil, onde o “grampo” já foi até
política de Estado, na ditadura militar.
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