Resposta a 10 mentiras comuns sobre indígenas
Hoje (20), no Dia do Índio, a antropóloga Lilian Brandt publicou artigo na Revista Fórum respondendo às dez afirmações falsas relacionadas aos povos indígenas e suas culturas que estão disseminadas em nossa sociedade. "Os índios estão perdendo sua cultura"; "Agora todo mundo pode ser índio"; "No Brasil não tem racismo"; "Índio não vai preso"; e para completar, a célebre: "Índios não gostam de trabalhar"Por Lilian Brandt, para a Revista Fórum
As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas
As afirmações listadas abaixo foram extraídas da vida real. Algumas nas ruas do interior do Brasil, outras nas cidades grandes, outras em discursos de políticos. Percepções diversas, vindas de pessoas com histórias diferentes, mas com um direcionamento em comum: a disseminação do discurso anti-indígena com argumentos falsos
Mentira nº 1: Quase não existe mais índio, daqui alguns anos não existirá mais nenhum
Se as pessoas não sabem muito sobre os indígenas na
atualidade, sabem menos ainda sobre o passado destes povos. Mesmo os
pesquisadores não encontram um consenso, e os números variam muito
conforme os critérios utilizados.
A antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo estima que,
na época da chegada dos europeus, a população indígena no Brasil era de 3
milhões de pessoas. Eram mais de 1.000 povos diferentes, que durante
séculos foram exterminados pelos conquistadores, seja por suas armas de
fogo, seja pelas doenças que eles trouxeram. De acordo com antropóloga,
em 1957 havia no Brasil apenas 70 mil indígenas. O crescimento desta
população é observado somente a partir da década de 1980.
Em 1991, quando o IBGE passou a coletar dados sobre a
população indígena brasileira, eles somavam 294 mil pessoas. Em 2000, o
Censo revelou um crescimento da população indígena muito acima da
expectativa, passando para 734 mil pessoas. Em 2010, a população
indígena continuou crescendo, e o Censo mostrou que mais de 817 mil
brasileiros se autodeclararam indígenas, representando 0,47% da
população brasileira. Eles estão distribuídos em 305 etnias e falam 274
línguas.
Esse aumento populacional jamais seria possível se fossem
considerados apenas fatores demográficos, como a natalidade e a
mortalidade. Esses dados revelam o crescimento do número de pessoas que
passaram a se reconhecer como indígenas e o “ressurgimento” de grupos
indígenas. Isto se dá porque, antes, ser índio no Brasil significava ser
atrasado, inferior, escravizado, catequizado, ser alvo de
discriminação, de chacinas e até mesmo não ser considerado humano.
Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de sua
cultura. Agora os povos indígenas voltam a afirmar sua identidade,
talvez porque as circunstâncias estejam mais amigáveis. Ou talvez porque
este grito não suporte mais ser calado.
Tratá-los simplesmente como “índios” esconde a imensa
diversidade cultural e circunstâncias de vida tão distintas. Mas algo
muito mais forte que as diferenças étnicas propicia a união destes
povos: o fato de se sentirem diferentes de nós.
Temos no Brasil todos os tipos de extremos: índios que
possuem seu território assegurado e índios que morrem lutando por seu
território; índios brancos e índios negros; índios cristãos e índios
pajés; índios isolados e índios urbanos.
Os povos indígenas isolados são aqueles que não
estabeleceram contato permanente com a população nacional e com o
Estado. As informações sobre eles são transmitidas por outros índios,
por moradores da região e por pesquisadores. A Funai (Fundação Nacional
do Índio) tem cerca de 107 registros da presença de índios isolados em
toda a Amazônia Legal, dos quais 26 já foram confirmados e estão sendo
monitorados, seja por imagens de satélite, sobrevoos ou expedições na
região. Não se sabe, no entanto, a quantidade destes povos e indivíduos
que vivem voluntariamente isolados.
Muitos já tiveram alguma experiência de contato não
amistosa com garimpeiros, madeireiros, grileiros e traficantes próximos à
fronteira. Também é provável que tenham tido ou mantenham contato com
populações ribeirinhas, seringueiros e, principalmente, com algum outro
povo indígena.
Os resultados do contato conosco são trágicos, a começar
pelas doenças que transmitimos, para as quais eles não têm imunidade:
sarampo, rubéola, caxumba, difteria, tétano, hepatite, gripe e outras.
Conhecendo esta realidade, estes povos que vivem em situação de
isolamento escolheram fugir. Isso não significa, no entanto, que eles
não tenham notícias de nossa sociedade. Eles observam rastros, utilizam
ferramentas e se relacionam com outros indígenas que contam as novidades
do mundo do branco.
Em outros tempos, como muitos devem se lembrar, o órgão
governamental indigenista, na época chamado SPI (Serviço de Proteção aos
Índios), deixava presentes como espelhos, panelas e ferramentas para
atrair os indígenas. Hoje a Funai busca garantir que eles tenham seu
território assegurado para transitarem livremente. Mas as ameaças são
muitas e cada vez mais seus territórios são menores.
Os indígenas que vivem em áreas urbanas somam 324 mil, ou
seja, 36% do total da população indígena, um número que vem crescendo
ano após ano (IBGE, 2010). Há dois motivos recorrentes para que esses
índios vivam em áreas urbanas. Um deles é a migração dos territórios
tradicionais em busca de melhores condições de vida na cidade. O outro é
que os limites das cidades cada vez mais alcançam as fronteiras de seus
territórios.
As pessoas continuam acreditando que a população indígena
está sendo reduzida, mesmo que os números digam o contrário e que eles
estejam mais presentes nos centros urbanos. A desinformação tem uma
consequência: fingimos que os índios estão deixando de existir e
gradualmente não pensamos mais na situação deles. Assim fica mais fácil
justificar nenhum respeito a seus direitos e à sua própria vida.
Mentira nº 2: Os índios estão perdendo sua cultura
Esta afirmação resume uma série de outras ideias muito
difundidas: “índio que usa celular não é mais índio”, e suas variáveis
televisão, computador, calça jeans, tênis, rede de pesca, barco a motor,
caminhonete, trator e etc.
De modo geral, cultura é o conjunto de manifestações que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a língua, a moral, os costumes, os comportamentos e todos os hábitos e aptidões adquiridos por pessoas que fazem parte de uma sociedade específica.
Sendo composta por diversos elementos, a cultura está em constante transformação, se inter-relacionando de diferentes formas com o ambiente, as circunstâncias, outras culturas e consigo mesma. Logo, a cultura não é algo que se perde, é algo que se transforma constantemente.
É certo, no entanto, que não temos uma relação de troca cultural justa com os indígenas. Nossa sociedade se caracteriza por termos uma cultura dominadora e impositiva. O impacto do nosso modo de vida reflete diretamente na vida dos indígenas, de forma que hoje já não há a mesma fartura e biodiversidade que se tinha em 1500. O rio está contaminado por agrotóxicos, a floresta foi derrubada e a quantidade de peixe e de caça foi drasticamente reduzida.
Neste sentido, a incorporação de elementos de outra cultura é também uma estratégia de resistência. O uso de equipamentos de pesca dos “brancos”, por exemplo, pode ser um modo de resistência cultural, num entendimento de que pescar é mais importante para a identidade indígena do que se manter preso a técnicas tradicionais e não chegar com o peixe em casa.
Uma das maneiras de se fortalecer a tradição é inovar a partir de uma forte referência tradicional. Um grupo de jovens Guarani Kaiowá nos dá um bom exemplo de resistência cultural. O grupo de rap Brô MC’s é formado por duas duplas de irmãos, e daí o nome “brô”, do inglês “brother”. Suas rimas misturam português e guarani e denunciam o desmatamento ilegal, o esquecimento e a perseguição que seu povo sofre por pressão do agronegócio. (Curta o som aqui)
Outras vezes, objetos não-indígenas podem ser inseridos na cultura indígena com um significado e uso completamente diferentes do nosso, como garrafas plásticas cuidadosamente cortadas e limadas para fazerem colares, à semelhança do que fazem há centenas de anos com as lascas de caramujos. E outras vezes, por fim, eles podem incorporar determinado elemento de outra cultura e nem por isso serem “menos índios”, assim como comer sushi não nos torna japoneses, tomar chimarrão não nos torna gaúchos e tomar banhos diários não nos torna índios.
Nos assusta a velocidade com que alguns indígenas incorporam elementos da nossa cultura no seu modo de vida. Mas sabemos que as trocas entre povos sempre existiram. Se nos chama a atenção ver um indígena ao celular, é porque não sabemos que o adorno que ele utiliza em rituais de sua tradição há séculos podem ter sido confeccionados por um outro povo e utilizados como moeda de troca. E por que não?
Com que velocidade os Karajá incorporaram elementos da cultura Tapirapé, e vice-versa? Com que velocidade os brasileiros incorporam elementos da cultura norte-americana? Não existe meios de medir precisamente as causas e os efeitos destas trocas culturais.
Nossa sociedade não aceita que este sujeito tão diferente de nós possa utilizar as mesmas tecnologias e bens de consumo que utilizamos. Assim, ao mesmo tempo que vemos os indígenas como inferiores por não terem desenvolvido as tecnologias que nos saltam aos olhos, não aceitamos que ele desfrute das facilidades da vida contemporânea. Como se tudo o que temos hoje fosse resultado apenas do trabalho de homens brancos e para usufruto exclusivo de homens brancos. Como se o progresso tecnológico e econômico não tivesse sido impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que pertenciam a esses índios.
Mas para que índio quer tecnologia? Tenho visto indígenas vendendo artesanatos através do Facebook, trocando e-mails com lojas que revendem suas produções, promovendo abaixo-assinados para terem seus direitos respeitados, se comunicando com parentes que ficaram na aldeia enquanto ele saiu para estudar na cidade e namorando, como a gente.
O uso da fotografia e, especialmente, a produção de vídeos, tem se destacado entre os povos indígenas com a função de registrar a realidade, de encenar mitos e histórias, de criar estórias e de mostrar para outros povos (indígenas ou não) um pouco de sua cultura. As produções audiovisuais também têm sido usadas como uma ferramenta de denúncia ao ataque de seus direitos.
Outro equipamento que tem sido bastante útil é o GPS, que pode ser uma ferramenta de vigilância e atuação conjunta com os órgãos responsáveis pelo combate do garimpo, de madeireiras e de outras atividades ilícitas.
De modo geral, cultura é o conjunto de manifestações que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a língua, a moral, os costumes, os comportamentos e todos os hábitos e aptidões adquiridos por pessoas que fazem parte de uma sociedade específica.
Sendo composta por diversos elementos, a cultura está em constante transformação, se inter-relacionando de diferentes formas com o ambiente, as circunstâncias, outras culturas e consigo mesma. Logo, a cultura não é algo que se perde, é algo que se transforma constantemente.
É certo, no entanto, que não temos uma relação de troca cultural justa com os indígenas. Nossa sociedade se caracteriza por termos uma cultura dominadora e impositiva. O impacto do nosso modo de vida reflete diretamente na vida dos indígenas, de forma que hoje já não há a mesma fartura e biodiversidade que se tinha em 1500. O rio está contaminado por agrotóxicos, a floresta foi derrubada e a quantidade de peixe e de caça foi drasticamente reduzida.
Neste sentido, a incorporação de elementos de outra cultura é também uma estratégia de resistência. O uso de equipamentos de pesca dos “brancos”, por exemplo, pode ser um modo de resistência cultural, num entendimento de que pescar é mais importante para a identidade indígena do que se manter preso a técnicas tradicionais e não chegar com o peixe em casa.
Uma das maneiras de se fortalecer a tradição é inovar a partir de uma forte referência tradicional. Um grupo de jovens Guarani Kaiowá nos dá um bom exemplo de resistência cultural. O grupo de rap Brô MC’s é formado por duas duplas de irmãos, e daí o nome “brô”, do inglês “brother”. Suas rimas misturam português e guarani e denunciam o desmatamento ilegal, o esquecimento e a perseguição que seu povo sofre por pressão do agronegócio. (Curta o som aqui)
Outras vezes, objetos não-indígenas podem ser inseridos na cultura indígena com um significado e uso completamente diferentes do nosso, como garrafas plásticas cuidadosamente cortadas e limadas para fazerem colares, à semelhança do que fazem há centenas de anos com as lascas de caramujos. E outras vezes, por fim, eles podem incorporar determinado elemento de outra cultura e nem por isso serem “menos índios”, assim como comer sushi não nos torna japoneses, tomar chimarrão não nos torna gaúchos e tomar banhos diários não nos torna índios.
Nos assusta a velocidade com que alguns indígenas incorporam elementos da nossa cultura no seu modo de vida. Mas sabemos que as trocas entre povos sempre existiram. Se nos chama a atenção ver um indígena ao celular, é porque não sabemos que o adorno que ele utiliza em rituais de sua tradição há séculos podem ter sido confeccionados por um outro povo e utilizados como moeda de troca. E por que não?
Com que velocidade os Karajá incorporaram elementos da cultura Tapirapé, e vice-versa? Com que velocidade os brasileiros incorporam elementos da cultura norte-americana? Não existe meios de medir precisamente as causas e os efeitos destas trocas culturais.
Nossa sociedade não aceita que este sujeito tão diferente de nós possa utilizar as mesmas tecnologias e bens de consumo que utilizamos. Assim, ao mesmo tempo que vemos os indígenas como inferiores por não terem desenvolvido as tecnologias que nos saltam aos olhos, não aceitamos que ele desfrute das facilidades da vida contemporânea. Como se tudo o que temos hoje fosse resultado apenas do trabalho de homens brancos e para usufruto exclusivo de homens brancos. Como se o progresso tecnológico e econômico não tivesse sido impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que pertenciam a esses índios.
Mas para que índio quer tecnologia? Tenho visto indígenas vendendo artesanatos através do Facebook, trocando e-mails com lojas que revendem suas produções, promovendo abaixo-assinados para terem seus direitos respeitados, se comunicando com parentes que ficaram na aldeia enquanto ele saiu para estudar na cidade e namorando, como a gente.
O uso da fotografia e, especialmente, a produção de vídeos, tem se destacado entre os povos indígenas com a função de registrar a realidade, de encenar mitos e histórias, de criar estórias e de mostrar para outros povos (indígenas ou não) um pouco de sua cultura. As produções audiovisuais também têm sido usadas como uma ferramenta de denúncia ao ataque de seus direitos.
Outro equipamento que tem sido bastante útil é o GPS, que pode ser uma ferramenta de vigilância e atuação conjunta com os órgãos responsáveis pelo combate do garimpo, de madeireiras e de outras atividades ilícitas.
Mentira nº 3: Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser índio
Se a pessoa se reconhece como indígena e se identifica com
um grupo de pessoas que também se reconhecem como indígenas e a
consideram indígena, então ela é. Não existe nenhum reconhecimento da
Funai, nenhum julgamento de um não-indígena e nenhum critério imposto
por nossa sociedade que possa ser maior do que o seu sentimento e o
sentimento da coletividade a qual ela pertença.
Ela pode se considerar indígena por uma questão genética
e/ou cultural, mas não cabe a nós e nem ao governo atribuir identidade a
outra pessoa. A autodeclaração é defendida também pela Convenção nº 169
sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2000.
Por isso, não tem fundamento a ideia de que “sendo assim,
todos os brasileiros seriam indígenas, já que correm em nossas veias
sangue indígena, daquela bisavó que foi pega no laço”. Este discurso não
viria de um indígena. Se o cidadão diz isso querendo reduzir o direito
de ser índio na atualidade, é evidente que está se identificando muito
mais com o bisavô estuprador do que com a bisavó violentada.
Repare que a televisão, por exemplo, se esforça em
caricaturar os indígenas. Quando a TV mostra aquele “indiozão” bonito da
Amazônia, forte, guerreiro, caçador, todo enfeitado de penas e muito
bem pintado, o povo acha bonito de ver e até acha que não existe mesmo
racismo contra indígena. Mas quando a TV diz que aquele é um índio,
discretamente nega outras possibilidades de índios.
Nega que existam índios sem penas e sem pinturas, com
jeans e celular. Nega aqueles que não têm mais arara em seu território e
por isso não usam cocar. Nega aqueles que têm cabelo crespo porque os
negros escravizados fugiram para sua aldeia e foram bem recebidos como
parceiros de resistência. Nega aqueles que vivem nas cidades porque seus
territórios foram invadidos, aqueles que vão para Brasília protestar,
etc.
Os índios são como são. Se nossa sociedade tem dúvida se
um indivíduo é índio, esta dúvida não encontra recíproca por parte dele.
Quem é índio sabe que é, porque tem a vivência do seu povo e sente na
pele o racismo.
Nossa sociedade acredita que existe uma escala de quem é
mais ou menos índio: “vive em maloca? Tem cabelo liso? Sabe pescar? Usa
celular? É rico?”. Mas não é assim que funciona, não existe uma
tabelinha para a gente definir quem é e quem não é, quem é mais e quem é
menos. Essa crença evidencia o desejo oculto de querer que tenham menos
índios, pois alguns já estão “aculturados” e “integrados”.
A Convenção nº 169 da OIT garante a autodeterminação dos
povos e o direito de que cada população indígena ou tribal possa
escolher seus próprios caminhos para o futuro. Esse princípio consta
ainda na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos
indígenas.
O entendimento de que os indígenas seriam assimilados até
deixarem de existir já foi superado na legislação, mas ainda precisa ser
superado na sociedade.
Mentira nº 4: O Brasil é um país miscigenado, aqui não tem racismo
Racismo, assim como machismo, é algo sutil. Às vezes ele
aparece escancarado, quando um sujeito chama um negro de “macaco”,
quando uma mulher é estuprada, quando se constata um salário menor para
mulheres e negros do que para homens brancos para fazerem exatamente o
mesmo trabalho. Esse racismo escancarado é muitas vezes (mas nem sempre)
condenado pela sociedade.
Mas nem tudo é preto no branco, racismo ou não-racismo. Há
infinitas combinações de cores, há infinitas formas de demonstrar e de
esconder o racismo e ainda assim julgar-se superior.
Com indígenas é pior, porque a diferença não está só na
cor da pele, no tipo de cabelo e na classe social. Além de tudo isso, a
diferença é cultural e muitas vezes até linguística. Os indígenas são os
brasileiros mais ímpares e diferentes que compartilham o mesmo
território que nós.
O racismo pode aparecer em momentos leves, entre amigos.
As pessoas naturalizaram de uma tal forma o racismo contra indígenas,
que não percebem que jamais poderiam usar aquelas mesmas palavras para
se referir a qualquer outro grupo de pessoas. Nossa sociedade tem sido
muito conivente com o racismo contra indígenas, a despeito do que diz
nossa legislação.
Conforme a Constituição Federal e a Lei nº 7.716/89, serão
punidos os crimes de discriminação ou preconceito contra raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional, sendo o crime de racismo
inafiançável e imprescritível. No entanto, diariamente os indígenas são
discriminados e são raros os casos de denúncia e condenação.
As redes sociais, por exemplo, estão repletas de conteúdo
racista. Em abril de 2014, a Justiça Federal condenou um jornalista
amapaense por cinco mensagens que utilizavam expressões de desprezo se
referindo aos índios Guarani Kaiowá. De acordo com a decisão, o
jornalista prestaria serviços comunitários na Casa de Apoio à Saúde
Indígena do Amapá (Casai) e pagaria seis salários mínimos ao Conselho de
Caciques de Oiapoque e à Associação dos Indígenas de Wajãpi. A proposta
é que, prestando serviços comunitários na Casai, o jornalista conviva
com indígenas e, conhecendo a realidade, passe a respeitá-los. Tomara
que sim. (Saiba mais)
Na esfera política os discursos de ódio estão cada vez
mais escancarados. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária,
Deputado Federal Luís Carlos Heinze (PP-RS), diversas vezes
desqualificou publicamente quilombolas, índios, gays e lésbicas (saiba mais).
As urnas mostraram que a população o apoia: em 2014, Heinze foi
reeleito pela 5ª vez, como Deputado Federal do Rio Grande do Sul, sendo o
deputado mais votado do estado.
Os discursos racistas atingem diretamente os indígenas. O
relatório Conflitos no Campo Brasil 2013, da Comissão Pastoral da Terra
(CPT), mostra que, das 1.266 ocorrências relacionadas ao conjunto dos
conflitos no campo no Brasil, 205 estão relacionadas a indígenas,
totalizando 16%. A maior parte destes casos refere-se a conflitos por
terra ou retomada de territórios, somando 154 ocorrências.
Os povos indígenas são os mais afetados pela violência no
Brasil. Ainda segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil, em 2013,
das 829 vítimas de assassinatos, ameaças de morte, intimidações,
tentativas de assassinato e outras, 238 eram indígenas. Das 34 mortes
por assassinato, 15 eram de indígenas. Eram também indígenas 10 das 15
vítimas de tentativas de assassinato, e 33 das 241 pessoas ameaçadas de
morte.
É triste constatar que as mortes de indígenas no campo, as
quais se caracterizam como um verdadeiro genocídio, encontram uma
referência no discurso de figuras públicas e lideranças políticas, quase
sempre motivadas por interesses econômicos.
O racismo (assim como o machismo) habita o imaginário
social, paira sobre a sociedade como um todo, e, consequentemente, sobre
cada indivíduo. Como toda ideia, ele é vivo, autônomo e se faz
transparecer em ações e ideologias.
Um dos modos que o racismo age é pela generalização,
quando se nota algo negativo de um indivíduo e se transfere essa questão
ofensiva para o povo todo. Utilizando um exemplo bem comum em cidades
pequenas que convivem com indígenas, imagine que alguém veja na rua um
homem bêbado. Se o homem não é indígena, comenta-se “este homem está
bêbado”, mas se ele for indígena o comentário é “os índios estão sempre
bêbados”.
A sociedade é racista, e mesmo que você não se considere
racista, às vezes ele pode escapar discretamente. Vigie seus atos,
pensamentos, sentimentos e se permita ver.
Mentira nº 5: Os índios têm muitos privilégios
Se estivéssemos aqui falando de privilégios como desfrutar
de uma vida em meio à natureza, estaria tudo bem. Mas não, infelizmente
este discurso vem acompanhado da crença de que “índio recebe um salário
do governo a partir do momento que nasce”.
Pior do que ter tantas pessoas acreditando nisso, é a
surpresa que expressam quando descobrem que não. “Não? Mas então, do que
vivem?”. Parece impossível acreditar que trabalham e que batalham pelo
seu sustento. Ao contrário do que tantos brasileiros acreditam, não
existe muita vantagem em ser indígena hoje em dia. Existe sim, muita
coragem.
Em relação à saúde, a diferença é que os indígenas são
atendidos pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que é
parte do mesmo SUS que atende aos não-indígenas. Na teoria, essa
distinção permite um olhar diferenciado dos profissionais de saúde,
considerando questões culturais e atuando em consonância com as práticas
de saúde tradicionais indígenas. Na prática, como os nossos postos de
saúde, alguns funcionam bem, outros não. Faltam equipamentos, às vezes
não têm remédios, faltam profissionais especializados, etc. Falta
percorrer um longo caminho.
Na área da educação por muitos anos os indígenas estiveram
expostos à imposição de nossos valores e negação de sua identidade e
cultura. Hoje o Ministério da Educação é responsável por desenvolver uma
educação diferenciada, intercultural e bilíngue, dando espaço aos
processos de aprendizagem e aos conhecimentos indígenas. Além disso, os
indígenas podem elaborar seus próprios currículos e rotinas escolares
com gestão indígena. De acordo com o Ministério da Educação, a maioria
dos professores ainda são não-indígenas, totalizando 7.968, enquanto
professores indígenas somam 7.321. Na prática, como no ensino público
para não-indígenas, com exceção de alguns casos de sucesso, faltam
materiais didáticos específicos, alimentação (sendo que poucas vezes
esta é de fato diferenciada), infra-estrutura etc.
Quanto aos benefícios sociais, indígenas são considerados
pelo INSS “segurados especiais” para fins de acesso ao salário
maternidade, aposentadoria por idade, auxílio doença, auxílio acidente,
aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio reclusão.
Segurados especiais são os trabalhadores rurais que
produzem em regime de economia familiar, sem utilização de mão de obra
assalariada. Além dos indígenas, são considerados segurados especiais os
agricultores, os seringueiros e os pescadores artesanais. Os indígenas
precisam comprovar que sua subsistência advém do extrativismo, do
plantio ou de outra atividade vinculada à terra e aos recursos naturais.
Ou seja, os indígenas acessam estes benefícios não por serem indígenas,
mas sim por viverem de atividades rurais, pois se forem assalariados,
deixam de ser segurados especiais.
E, por fim, os indígenas possuem o direito de usufruir de seu território. As Terras Indígenas não
são dos indígenas, são propriedade da União, terras
públicas que pertencem a toda a nação brasileira, cedidas aos índios em
regime de posse permanente e usufruto exclusivo. Ou seja, eles não têm a
propriedade das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso
das riquezas do solo e das águas para a atual e as futuras gerações
viverem.
Mentira nº 6: Os índios são tutelados, por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
Essa história é antiga e tem um fundo de verdade. Desde o
período colonial até o século passado, o Estado sempre considerou que os
indígenas deveriam ser integrados, ou seja, deveriam negar suas
identidades em nome de sua inserção à nação brasileira.
Esta concepção foi perpetuada por séculos e virou “tutela”
no Código Civil de 1916 (artigo 6º), que enquadrou os índios na
categoria de relativamente incapazes, condição semelhante à dos órfãos
menores de idade no século XIX.
O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) endossou o regime de
tutela, depois de separar categorias de índios em “isolados”, em “vias
de integração” e “integrados”, estabelecendo que o regime tutelar se
aplicaria aos índios ainda não integrados.
O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e os
mantém sob controle. Em nome desta “tutela”, o Estado brasileiro
promoveu um verdadeiro genocídio. A Comissão Nacional da Verdade, que
investiga crimes cometidos pelo governo ou agentes da ditadura militar,
estima que somente a construção de estradas na Amazônia, no governo do
general Médici (1969-1973), matou em torno de 8 mil índios (saiba mais).
Na região do Araguaia, o povo Xavante de Marãiwatsédé
entregou um relatório de 71 páginas à Comissão Nacional da Verdade.
Entre os crimes, estão a invasão do território com a condescendência de
autoridades, empresários e poderes locais e nacionais (saiba mais).
A legislação só tomou um rumo diferente em 1988, com a
atual Constituição Federal Brasileira. Nossa Constituição reconheceu e
introduziu os direitos permanentes dos índios, abandonando a ideia de
que eles seriam assimilados à nossa sociedade e endossando a ideia de
que os índios são sujeitos presentes e capazes de permanecer no futuro.
Ela reconheceu ainda o direito dos indígenas às suas terras e à
cidadania plena. Esse avanço na legislação indigenista foi uma conquista
do movimento indígena.
O Novo Código Civil Brasileiro (2002), em seu Art. 4º, diz
que “a capacidade dos índios será regulada por legislação especial”.
Como essa tal lei não existe, alguns podem acreditar que se trata do
antigo Estatuto do Índio, e daí se cai em contradição, já que o referido
Estatuto trata o índio como semi-incapaz.
O Estatuto do Índio e suas ideias retrógradas nunca foram
oficialmente revogados, mas muitos especialistas acreditam que a
Constituição Brasileira, como nossa lei máxima, por si só já o revoga em
relação à tutela. Porém, muitos juristas, legisladores e a população
brasileira ainda remetem ao Estatuto do Índio para embasar decisões e
discursos, valendo-se da contradição das leis e provocando insegurança
jurídica para os povos indígenas.
Por isso, no entendimento da Funai e de diversos
especialistas, indígenas são tão cidadãos quanto nós, e podem sim
comprar bebidas alcoólicas fora das Terras Indígenas. Aliás, o
comerciante que não vendesse estaria cometendo um crime ao discriminar o
indígena, além de uma prática abusiva prevista no inciso IX do art. 39
do Código de Defesa do Consumidor.
Algumas instâncias governamentais encontram amparo legal
no Estatuto do Índio para proibir a venda de bebidas alcoólicas para
indígenas. O Artigo 58 desse Estatuto estabelece que constitui crime
“propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de
bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados”.
Em relação à criminalização, o Estatuto do Índio diz que a
pena deve ser atenuada, e “se possível, em regime especial de
semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência
aos índios mais próximos da habitação do condenado” (Art. 56).
A tutela em nada tem a ver com a não-responsabilização do
indivíduo por um crime que praticou. Tem a ver com um julgamento
diferenciado caso a questão se relacione à sua prática cultural e à
necessidade de um intérprete em seu interrogatório, caso o indígena não
tenha completo domínio da língua portuguesa.
Em relação aos delitos, a lei para os indígenas é a mesma
que a nossa. Índios podem ser e são presos quando roubam, quando
praticam atos de violência, cometem assassinatos e por todos os motivos
que os não-indígenas são presos. São presos também injustamente, para
serem calados e oprimidos, para não serem cumpridos seus direitos como
no caso do Cacique Babau, que luta pelo seu território e sofre
continuamente perseguição das autoridades (saiba mais).
Mentira nº 7: Tem muita terra para pouco índio
Em 1978, o Estatuto do Índio ordenou ao Estado brasileiro a
demarcação de todas as terras indígenas até dezembro de 1978. Depois de
dez anos, a Constituição Brasileira reconheceu aos índios os “direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Art.
231), e estabeleceu o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as
Terras Indígenas.
Quando a Constituição traz o termo “direitos originários”,
ela revela que este direito vem desde sempre, antecedendo à própria
Constituição. As demarcações são apenas reconhecimento desse direito
pré-existente. A noção de território não constitui apenas uma relação de
ocupação ou exploração, mas o fundamento da existência do povo, pois
somente em seu território é possível a prática plena de sua cultura.
No entanto, até hoje o Estado se recusa a cumprir sua
obrigação e a cada dia crescem mais os interesses econômicos sobre estas
terras tradicionais. Não bastasse isso, muitas Terras Indígenas são
cada vez mais diretamente ou indiretamente afetadas por grandes
empreendimentos, monoculturas com uso abusivo de agrotóxicos,
mineradoras etc.
Enquanto os agentes destes grandes poderes econômicos
tentam barrar todos os processos de demarcações, também dizem que é
preciso modificar o procedimento de demarcação. O Decreto 1.775/1996
detalha todo o procedimento, havendo um grupo técnico especializado,
coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos
complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica,
cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à
delimitação. Após passar por autorização da Funai, é aberto um prazo
para contestações e somente depois é feita a demarcação.
Os ocupantes não-indígenas são indenizados tanto pelas
benfeitorias quanto pelos títulos de propriedade de boa fé. Além disso,
os ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma agrária são
reassentados, a cargo do Incra.
As Terras Indígenas são inalienáveis e indisponíveis, ou
seja, os indígenas não podem efetuar nenhum negócio jurídico que
acarrete a transferência da titularidade de direitos sobre estas terras,
e nem mesmo permitir o beneficiamento de não-indígenas com a exploração
dos recursos naturais, pois o usufruto é exclusivos dos indígenas.
O discurso anti-indígena tem como principal argumento que
as Terras Indígenas ocupam 13% do território nacional. Mas os
brasileiros não se dão conta da imensa área que os latifúndios ocupam. O
Brasil tem uma área de mais de 851 milhões de hectares. Destes, mais de
318 milhões são ocupados por grandes propriedades, totalizando 37% do
território nacional.
A tabela abaixo mostra a quantidade de propriedades, a
soma da área que estas propriedades ocupam e a porcentagem que esta área
representa sobre o território nacional. Para compreender melhor,
consideramos que “minifúndio” é o imóvel de área inferior a um módulo
fiscal (Decreto nº 84.685/1980), “pequena propriedade” é o imóvel rural
com área entre 1 e 4 módulos fiscais (Lei nº 8.629/1993) e “média
propriedade” é o imóvel rural com área superior a 4 módulos fiscais e
até 15 módulos fiscais (Lei nº 8.629/1993).
Não há definição legal para “grande propriedade”, a qual,
no entanto, passou a ser tida na prática das políticas agrárias como o
imóvel rural com área superior a 15 módulos fiscais.
Módulo fiscal é uma unidade de medida corresponde à área
mínima necessária a uma propriedade rural para que sua exploração seja
economicamente viável (Lei nº 6.746/1979). A depender do município, um
módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares.
Proponho agora um exercício de imaginação. Consideremos
que estes 130 mil proprietários vivam em suas grandes terras com suas
famílias, e imaginemos que cada lar tenha em média 3,3 moradores, a
mesma média dos lares brasileiros de acordo com o Censo Demográfico
2010.
Vamos desconsiderar que, ainda segundo o Incra, 69 mil das
grandes propriedades, que equivalem a mais de 228 milhões hectares (40%
da área das grandes propriedades) são improdutivas. A maior parte
destas pessoas possuem outras fontes de renda, não produzem seus
alimentos e não possuem laços ancestrais com a terra. Muitas vezes os
proprietários não são pessoas, e sim empresas. Mas, por hora, deixemos
estas questões de lado e nos voltemos aos números, tratando igualmente a
área indígena e a de grandes proprietários.
Os indígenas, por sua vez, ocupam uma área de 106 milhões de hectares, sendo mais de 567 mil pessoas, conforme a tabela abaixo:
Ou seja, os indígenas estão em um território quase 3 vezes
menor que o território das grandes propriedades, apesar de ser quase 4
vezes mais populoso. E repare que não estão sendo contados aqui os
indígenas que vivem nas cidades, somente os que vivem em Terras
Indígenas. Seria preciso multiplicar em 37 vezes o número de
proprietários no latifúndio para ele se equivaler à área por pessoa em
Terra Indígena. Portanto, nota-se: temos no Brasil muita terra para
poucos proprietários.
A maior parte das terras indígenas está na Amazônia Legal,
onde vive cerca de 55% da população indígena no Brasil. Nas demais
regiões do país, principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul,
além do estado do Mato Grosso do Sul, os povos indígenas conseguiram
manter a posse em áreas geralmente diminutas e esparsas, espremidos
entre cidades e fazendas, sem as condições mínimas necessárias para
manter seu modo de vida. É justamente nessas regiões que se verifica
atualmente a maior ocorrência de conflitos fundiários e disputas pela
terra.
O que está em jogo não é aquele pé de fruta que o avô
plantou e onde ele amarra sua rede. Não importa que ali estejam
enterrados os seus antepassados, que ali seja a morada de seus espíritos
e do mundo sagrado. O “desenvolvimento” vem como um trator atropelando
tudo com suas hidrelétricas, mineradoras, gados, sojas e milhos
transgênicos. Os índios amam o seu território. E muitos morrem porque os
não-índios amam o dinheiro.
Mentira nº 8: Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
Cá entre nós, poucas pessoas verdadeiramente gostam muito
de trabalhar. A maioria trabalha porque precisa do dinheiro para pagar
as contas, para comprar comida, para comprar o celular e para comprar
sempre e cada vez mais tudo que possa surgir. Essa é a lógica das
sociedades capitalistas: ter cada vez mais, acumular e nunca estar
satisfeito com o que tem.
A lógica indígena, tradicionalmente, não se interessa em
acumular, e sim em desfrutar. Portanto, se antes do sol chegar ao alto
do céu, o homem já pescou peixe para a família toda se alimentar naquele
dia, ele pode voltar para casa e descansar, pois sua obrigação já foi
cumprida.
Mas espera aí… caçar, pescar, plantar, colher, manejar,
construir sua casa, fazer seu barco e fazer tudo mais que uma vida
auto-subsistente necessita não parece nada fácil. Imagine então que para
realizar cada uma destas tarefas é preciso muitas outras. Para fazer o
barco, por exemplo, é preciso entrar no mato, encontrar uma árvore de
uma espécie específica que esteja num bom tamanho e formato, derrubar a
árvore, tirar da floresta, cortar e moldar a madeira, queimar de um modo
específico com uma lenha específica, moldar novamente como o avô
ensinou, queimar de novo, e pronto, finalmente ele tem o barco para
pescar, resumidamente. Quem se habilita?
Durante séculos os indígenas estiveram domesticando
diversas espécies de plantas que hoje consumimos, como o milho, um dos
grãos mais produzidos no mundo, e a mandioca, que os brasileiros tanto
gostam. Estas plantas e tantas outras, como feijões, abóboras, carás e
tomates, não eram encontradas na natureza como hoje as conhecemos. São o
resultado de muito trabalho indígena.
Superando esse preconceito, vamos considerar que os
indígenas também têm o direito de querer comprar coisas que compramos,
e, portanto, precisam de dinheiro. Algumas etnias estão buscando meios
de vida que integrem sua cultura a essa nova necessidade.
É o caso do povo Paumari, que vive no sudoeste do Amazonas
e está sendo pioneiro no manejo de pirarucu. Há 5 anos eles fazem o
manejo de 23 lagos, e no final de setembro de 2014 realizaram a pesca de
3.523 kg de pirarucu legalizados pelo Ibama. A iniciativa é apoiada
pelo projeto Raízes do Purus, realizado pela OPAN – Operação Amazônia
Nativa com o patrocínio da Petrobras (saiba mais).
Outro exemplo de geração de renda aliado à
sustentabilidade e à cultura vem da etnia Kisêdjê, que habita a Terra
Indígena Wawi, anexa ao Parque Indígena do Xingu. Desde 2011 a
comunidade participa de um projeto para produção e comercialização de
óleo de pequi. Em 2013 foram produzidos 170 litros do óleo na mini usina
contruída na aldeia Ngohwêrê. O projeto conta com o apoio técnico do
ISA – Instituto Socioambiental e financeiro e organizacional do
Instituto Bacuri e do Grupo Rezek (saiba mais).
Mentira nº 9: Nossa sociedade é mais avançada, não temos nada para aprender com os índios
Todo mundo sabe que a cultura brasileira tem influência
indígena. Com eles aprendemos diversas palavras, o respeito à natureza e
o hábito de tomar banho todos os dias, certo? No entanto, para cada
elogio existe um contraponto: “índio que fala português não é mais
índio”, “antes índio era inocente, agora índio só pensa em dinheiro” e a
pior frase de todas: “índio fede”.
Essa mentira é muito comum: “índio fede”. Não, o que fede é
o preconceito. Índio tem cheiro de óleo de tucum, de urucum e jenipapo,
tem cheiro de fogo feito em casa, de peixe assado, de suor de quem
trabalha, de banho de rio, de sabonete e de perfume comprado em
shopping.
Enchemos o peito para dizer que o Brasil é um país lindo,
rico em minérios, com uma biodiversidade impressionante e com muita
fartura de água. Mas seguimos exaurindo os nossos recursos naturais
perseguindo um desejo de crescimento que parece nunca ter fim, como se
os recursos naturais fossem infinitos. Mas saibam, recursos naturais
chegam ao fim.
Estamos sacrificando nossa diversidade biológica e
cultural para enriquecer ainda mais quem já é rico. E os índios, que são
o símbolo maior de uma vida sustentável, que são os grandes
conhecedores da biodiversidade brasileira, tão pouco conhecida pelos
cientistas, estão sendo desprezados.
Enquanto se desmata incessantemente a Amazônia e o
Cerrado, desaparecem espécies de plantas que poderiam ser utilizadas
para tratar inúmeras doenças, conhecidas ou não. Enquanto se pratica o
genocídio e se mantém os indígenas como reféns do “progresso”, infinitas
possibilidades de conhecimento vão desaparecendo e os brasileiros não
se dão conta.
Mas fora do Brasil, há quem esteja bem atento às nossas
riquezas. Em 2013, quatro coreanos foram presos em Canarana (MT) por
biopirataria no Parque Indígena do Xingu. Eles fizeram um acordo com os
Kamaiurá, do Alto Xingu, e pagaram para obter 10 quilos de raízes e
plantas usadas pelos índios para fins cosméticos. Os coreanos viviam nos
Estados Unidos e um deles trabalhava para uma empresa de cosméticos. O
acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, sua proteção
e a repartição de benefícios associados é regido pela Medida Provisória
nº 2186/16, de 23 de agosto 2001 (saiba mais).
E não se trata apenas de conhecimentos da natureza, mas
até mesmo de uma nova estrutura econômica e social, de um novo jeito de
fazer política, de tomar decisões, de olhar para nós mesmos, para nossos
semelhantes e para aqueles que são diferentes. Ninguém quer ouvir as
contribuições que o pensamento indígena pode trazer.
O racismo é uma voz que sussurra ao ouvido dizendo que os
índios são mais “atrasados” que a gente. Como se o “desenvolvimento”
fosse uma linha única para toda a humanidade, como se nossa sociedade
fosse um exemplo a ser seguido. Já que nós gostamos tanto de olhar para
nosso umbigo, vejamos também o que o nosso “desenvolvimento” tem gerado:
produção de lixo, contaminação e esgotamento de água, desigualdade
social, violência e por aí vai…
Mentira nº 10: Os índios atrasam o desenvolvimento do País
Mesmo que no mundo todo cada vez mais aumente a
preocupação ambiental, o Brasil continua com a mesma ideologia que
balança no centro de nossa bandeira, nossa palavra de ordem é o
progresso.
Um progresso desesperado, que não pode dar o tempo para
fazer o estudo de impacto ambiental, que não pode analisar as
possibilidades de redução de danos, um progresso que chega custe o que
custar, e que agora, mais do que nunca, quer explorar os recursos das
Terras Indígenas.
O principal aspecto a ser considerado é que os grandes
donos do poder econômico (os setores bancário, armamentista, minerário,
farmacêutico, da construção civil, do agronegócio etc.) possuem
interesse em divulgar uma imagem negativa dos indígenas. As grandes
corporações tomaram conta da arena política e querem a qualquer custo
convencer a nação de que “é preciso crescer e os índios atrasam o
desenvolvimento do País”. Na lógica deles é mais importante plantar soja
para a China do que preservar as nascentes brasileiras.
O cenário que se apresenta hoje aos povos indígenas é pior
do que o do índio que avistou Cabral em 1500. A partir de 2015, teremos
o Congresso mais conservador desde 1964, e especialmente, mais
anti-indígena. Foram eleitos 273 deputados federais e senadores
considerados ruralistas, o que representa um aumento de 33% em relação à
legislatura atual, que conta com 205 ruralistas. Várias investidas
avarentas da bancada ruralista ganharão força, como a Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 215/2000, a PEC 237, o Projeto de Lei (PL) 1.610, o
PL 227/2012 e a Portaria 303, de iniciativa da Advocacia Geral da União
(AGU).
Estas iniciativas tratam de temas como demarcação de
Terras Indígenas, posse indireta de Terras Indígenas a produtores rurais
na forma de concessão e exploração e aproveitamento de recursos
naturais em Terras Indígenas (minérios, recursos hídricos, florestais,
etc.), independe de consulta às comunidades afetadas. Além de irem
contra a legislação vigente e preceitos universais, elas são cruelmente
orquestradas para que se perpetue no país o ódio aos indígenas (saiba mais).
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal (saiba mais). E seguem lutando diariamente.
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal (saiba mais). E seguem lutando diariamente.
Os indígenas têm o direito de viverem em seus territórios.
Já temos no país muitas terras para a criação de gado e o plantio de
monoculturas, concentrada nas mãos de poucas pessoas. Desenvolvimento é
bom, mas de qualquer jeito, não. Não podemos admitir um desenvolvimento
que desrespeite leis, culturas e provoque mais desigualdade social.
Os indígenas devem poder escolher se desejam se beneficiar
do desenvolvimento e de que forma, ou se preferem nem se envolver. Mas
eles não podem continuar sendo desrespeitados em nome do interesse
econômico.
Não precisamos de um crescimento desrespeitoso, realizado
sem estudos de impacto ambiental, social e cultural. Tampouco
necessitamos da malícia de políticos e da mídia. Precisamos sim tirar a
venda dos olhos e enxergar o índio realmente, pois são mentiras e
preconceitos que atrasam a evolução humana.
O desenvolvimento deve ser bom para todos. A paz entre os
povos, já prevista em nossa Constituição Federal, deve ir além da
diplomacia e incluir os que vivem em solo pátrio.
Tenhamos amor!
*Lilian Brandt é antropóloga e colaboradora da AXA (Articulação Xingu Araguaia)
FOTO: Lilian Brandt
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