A Lava Jato e o arbítrio privado, individual e egóico
Artigo do professor Rogério Dultra dos Santos, publicado originalmente no blog “Democracia e Conjuntura”
O juiz lava-jato, em seus procedimentos e
decisões, tem a pretensão de funcionar como um burocrata que maneja o
instrumental técnico do direito sem manifestar envolvimento pessoal ou
individual. Figura no processo como uma engrenagem especializada: apesar
de representar uma autoridade, um poder político, ao manter a aparência
de distanciamento e ausência de “interesse” no caso examinado, deseja
ser visto, em geral e especialmente, como destituído de responsabilidade
ou intencionalidade política. A aplicação da lei toma, sob sua
jurisdição, a forma de um resultado exclusivamente técnico, onde
prevalece a avaliação derivada do conhecimento do direito e onde
desaparece a vontade e a escolha na conformação da decisão.
O processo judicial e o decidir do juiz
lava-jato não são apresentados como a resultante de uma escolha
política, determinada pela visão de mundo vinculada e personalizada na
autoridade de quem decide, influenciada por elementos de classe, por
percepções, afetividades e afinidades conscientes ou inconscientes. A
decisão expressa na sentença, nos mandados de prisão preventiva ou na
escolha pela delação é vista e compreendida, pelo contrário, como uma
derivação da regularidade racional das normas.
A suposta aplicação impessoal e
eqüidistante do direito, efetuada pelo juiz lava-jato, opera uma
sacralização do processo e uma purificação do próprio aplicador da lei
que funcionam como uma verdadeira canonização, uma blindagem do juízo à
critica. As decisões deste juiz são tidas, assim, como neutras e
indiferentes a valores. Há uma verdadeira fé na neutralidade do processo
judicial. Uma fé que – interessantemente –, não se explica pelos seus
resultados ampla e sistematicamente enviesados.
A estrutura discursiva que legitima o
operar do juiz lava-jato não elimina a disputa política inerente ao
mundo real, neutralizada nas fórmulas decisórias do direito e expressas
nas lides judiciais. O conflito político, próprio da vida social, é
apenas ocultado. Subjaz ao caráter técnico e asséptico da decisão, da
manutenção do réu preso, da decretação da prisão, de todo ato judicial, a
sua resultante política. Isto porque o direito enquanto instrumento
técnico, neutro e cego a valores, está necessariamente subordinado à
direção e aos valores de quem decide. Curiosamente, enquanto os
instrumentos técnicos não têm a capacidade de decidir, a decisão porta a
direção.
A interpretação que põe e orienta
concretamente a norma jurídica lhe é externa. Isto significa que o
sentido do direito é determinado a partir de fora. Então, a vinculação
entre aplicação técnica do direito e uma finalidade moral ou ética
automaticamente alcançada é uma conexão irreal e/ou ingênua. Toda e
qualquer finalidade ética e moral é pessoalmente desejada por quem
aplica o direito, e este é aplicado de forma a que esta finalidade
específica seja alcançada.
O sentido do direito é determinado por
quem o aplica. A conseqüência deste fato sociologicamente apreciável é
que quem conduz o direito no sentido que deseja reclama para si o poder
que deriva de sua aplicação. Assim, o juiz lava-jato não é um servo do
direito. É o seu senhor. E um senhor que comanda este instrumento cego
de acordo com as suas necessidades, percepções e interesses, sejam eles
conscientes ou não.
A luta pelo direito é a luta para saber
quem será capaz de dominá-lo politicamente, porque o seu domínio
político representará a possibilidade da divinização da visão de mundo
de quem o controla. O domínio político através do direito se realiza
como sacralização da vontade de quem decide e como canonização da
decisão em si.
Neste sentido, o juiz lava-jato, que
inicia o seu processo de ascensão política como um burocrata, como uma
engrenagem técnica do ordenamento jurídico, pode figurar sem problemas
como o portador da verdade. A imparcialidade da burocracia judicial
transforma-se, num passe de mágica, na potência heróica do dirigente
político, assentado na função de juiz.
Este processo opera uma espécie de
rebaixamento do próprio direito. Este deixa de ser um instrumento de
afirmação do poder republicano e da vontade popular expressos na
constituição e se transforma, nos espaços reservados do foro, em
arbítrio privado, individual e egóico.
Paradoxalmente, a veiculação de que as
decisões judiciais são universais, abstratas, impessoais e, portanto,
“justas” é uma abstração provocada por quem tem interesse em não se
comprometer com o que se faz e o que se fez. As conseqüências possíveis
de um proceder técnico não são de responsabilidade de ninguém. Se as
prisões, as delações, os procedimentos e acusações forem invalidados
posteriormente, “a culpa é do processo”.
Irresponsável pelos atos e inimputável
pelas conseqüências, o juiz lava-jato pode se permitir construir e
reconstruir, a seu bel-prazer, o processo e os procedimentos. Quantas
vezes quiser. E por quanto tempo desejar. O direito se transforma, em
suas mãos, em uma novela fantástica, manipulada pelo discurso jurídico e
pela autoridade da razão aclamada.
Ao mesmo tempo em que não se compromete
politicamente com a realidade concreta, o juiz lava-jato transforma-se
no demiurgo do futuro através da construção discursiva de uma república
imaginária, pura, existente no espaço exclusivo de sua fantasia. Isto
significa que ele torna-se eticamente responsável apenas por si mesmo.
Emancipado das amarras do processo (e da realidade) por suas
interpretações e isolado, por elas, da necessidade de explicar-se pelos
seus atos, toma de Deus o lugar do absoluto.
E neste lugar, para além de qualquer
controle – inclusive o democrático –, pode reivindicar que a sua forma
de conduzir a república é a única coisa que interessa. A estabilidade
institucional, a permanência da democracia, o controle político do
processo representativo, tudo o que pode perecer a partir das
conseqüências de seus atos é compreendido, interpretado e aceito sem
conflito, posto que a passividade constitui a essência de quem se
entende ou se justifica publicamente como um simples burocrata. E esta é
a essência do mal.
Este modelo de juiz, o juiz lava-jato,
representa filosoficamente a essência do mal porque o mundo lhe aparece
como simples ocasião para o seu deleite individual. O burocrata aqui se
despe revelando-se como um perverso. A sua perversidade específica é
considerar que o direito, enquanto regra e estabilidade – o direito como
garantia, como devido processo –, deve estar submetido à variação de
seus interesses secretos. A impessoalidade da norma contrasta – e mesmo
nega – a vontade de poder deste indivíduo que a opera.
O indivíduo-burocrata transforma-se em
juiz-Deus-Estado. Sua subjetividade é catapultada à posição política de
norma condutora da interpretação da vida social. A ideia de corpo social
se desfaz na subjetividade de seu agente-condutor. E o futuro da
democracia torna-se pobre, sórdido, embrutecido e curto.
Rogério Dultra dos Santos
é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro (IUPERJ), professor de Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
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