A guarda privada do acervo de Lula é crime? E a dos nove caminhões que FHC levou do Palácio?
POR FERNANDO BRITO
O pessoal do “peguem Lula de qualquer jeito” está fazendo onda com o acervo do ex-presidente Lula, como se o ex-presidente Lula o tivesse carregado indevidamente, como antigamente se levava um cinzeiro de hotel.
Então vamos fazer um be-a-bá para entender que o acervo é propriedade privada do ex-presidente, apenas sujeito a condições especiais de guarda e de – atenção, atenção! – venda, se este assim o desejar.
E foi assim com Fernando Henrique Cardoso que, aliás, levou nada menos que “NOVE caminhões de mudança do Palácio do Planalto e guardou o que eles em depósitos pagos por empresas privadas”
Sabem onde está escrito isso? É, na revista Época…em matéria publicada em dezembro de 2010.
A mesma que, quatro dias atrás, quer fazer escândalo com o pagamento pela guarda do acervo de Lula e conta com o furor do Ministério Público, achando que isso é “vantagem indevida”. Se é, vão conduzir coercitivamente FHC para saber quem pagou a guarda de seu acervo de nove caminhões durante um ano, como informa a Época?
E sabe o que tem de errado nisso?
Nada.
Este acervo é privado, nos termos do Decreto Nº 4.344, de 2002 (de FHC, portanto), que regulamenta a Lei 8.394/91.
Tanto é assim que o artigo 2º da lei diz: “os documentos que constituem o acervo presidencial privado são na sua origem, de propriedade do Presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda.”
Herança, doação ou venda; portanto, privados. O único que se estabelece é que a União, querendo, terá prioridade para adquiri-los, por seu valor histórico.
O decreto de FHC vai além e determina até o que o presidente tiver antes de tomar posse é considerado acervo presidencial o que, se não continuasse a ser privado, constituiria um confisco de bens pessoais.
E os presentes que Lula recebeu em suas viagens são considerados acervo presidencial?
Veja o que diz o decreto de FHC, com grifos meus:
Art. 3o Os acervos documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais.
Com ajuda da Época (a de 2010) fica fácil mostrar como são objetos absolutamente extra-mercado, cujo valor não pode ser mensurado nos limites dos “presentes”.
No acervo de Lula, há um pouco de qualquer coisa. Somadas todas as camisas de futebol recebidas pelo presidente (duas, aliás, assinadas por Kaká e pelo português Cristiano Ronaldo), ao menos um time completo conseguiria entrar em campo. Fidel Castro não deixa passar nenhuma data comemorativa sem enviar uma caixa de charutos cubanos ao presidente, que acumulou várias delas nos últimos oito anos. Fazem companhia a um capacete de Ayrton Senna, doado por sua irmã, Viviane Senna, e a uma coleção de bombachas e cuias de chimarrão, enviada por populares.
Essa é uma característica do arquivo de Lula, em que os presentes dos dignatários se misturam às ofertas de gente comum. Quando o presidente teve bursite no ombro, em maio de 2003, o acervo foi inundado por unguentos, como a banha do peixe-boi, o sebo de carneiro ou o “lubrificante nerval” – uma mistura indecifrável de ingredientes que cheira à arnica e promete curar desde caspa a câncer de próstata. Do Nordeste, uma senhora que supôs que o nordestino Lula poderia sentir frio no Planalto Central enviou a ele um par de meias de lã vermelhas tricotadas por ela. O presidente ganhou até um torno mecânico, semelhante ao que decepou um de seus dedos da mão esquerda.
Alguns presentes contam muito sobre quem os deu. Enquanto os do ex-presidente americano George W. Bush se resumiam a botas e cintos de couro rústicos, Barack Obama deu a Lula uma sofisticada peça de cristal negro ornamentado com a gravação do primeiro artigo da Constituição dos Estados Unidos (aquele que estabelece os limites dos poderes federais). Os presentes de líderes do Oriente Médio são pródigos em ouro e pedras preciosas. Da Coreia do Sul, Lula ganhou uma coroa de ouro e jade, réplica de um dos tesouros nacionais do país. O ex-presidente Fernando Henrique tem um objeto semelhante em seu acervo. Curiosamente, a coroa de Lula tem mais do que o dobro do tamanho da coroa de FHC. “Talvez seja um reflexo da popularidade do atual presidente ou do ânimo dos coreanos em investir no país”, diz, em tom de blague, Danielle Ardaillon, curadora do acervo do Instituto FHC.”
E é mesmo só olhar lá. Há objetos de ouro e brilhantes, mas sem valor comercial, a menos que se desmanchasse e derretessem para vender a peso. Há prêmios e comendas. Há de tudo.
Aliás, nem se pode dizer, entre eles, quais foram, de fato, levados por Lula ou quais não foram presentes trocados em visitas de chefe de Estado, mas enviados como presente pessoal.
E os nove caminhões de Fernando Henrique carregavam só papéis?
Ou ele aproveitou e fez um frete do seu próprio ego?
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