A PEC DO ENFORCAMENTO.
Restringir o poder de investigação do Ministério Público viola o
sistema constitucional do País e cria uma "reserva de mercado" para as
polícias judiciárias, algo comum apenas nas ditaduras.
Neste mês de junho, começa a ser definido o futuro da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC 37/2001) que dá exclusividade às polícias
judiciárias – federal e estaduais – para apurar, em procedimento
preliminar, a autoria e a materialidade de condutas tipificadas na
legislação penal. Uma proposta da lavra de Lourival Mendes (PTdoB--MA),
delegado de polícia eleito deputado federal. No caso de exclusão do
Ministério Público, teremos uma segunda batalha no Supremo Tribunal
Federal (STF) e sobre a inconstitucionalidade da PEC 37. Essa emenda,
como alertou o respeitado jurista René Ariel Dotti, torna o Ministério
Público (MP) “refém das polícias”.
Não são novas as tentativas de amordaçar e reduzir os poderes e as
garantias constitucionais assegurados ao MP. Com FHC, o período foi
fértil e se aproveitou dos notórios abusos dos procuradores regionais
Luiz Francisco de Souza e Guilherme Schelb. No STF, e pela primeira vez,
coube a Nelson Jobim levantar a tese da exclusividade policial nas
investigações de infrações penais e, assim, entendeu este ministro
ilegítimas as investigações criminais realizadas por representantes do
MP. Até agora temos apenas manifestações das supremas Turmas julgadoras,
com divergências. No entanto, a maioria aponta para a legitimidade da
investigação pelo MP. O destaque que sufraga a inconstitucionalidade da
apuração ministerial está no voto da ministra Cármen Lúcia.
Nos anos 1940 e na elaboração do Código de Processo Penal, a discussão
centrou-se na adoção, na futura lei processual penal, do modelo europeu
do “juizado de instrução” (cabe ao juiz investigar os ilícitos penais)
ou do princípio da separação da atividade administrativa de polícia da
jurisdicional. Na Europa, evoluiu-se e a atividade investigatória é
atribuição da magistratura do Ministério Público. Mais ainda, nos 196
Estados Nacionais do planeta apenas nas ditaduras e em raros países da
África proíbe-se o Ministério Público de investigar criminalmente.
A PEC 37 viola o nosso sistema constitucional acusatório. O ponto
fulcral decorre do fato de o Ministério Público ser o titular exclusivo
da ação penal pública e a Polícia Judiciária (apesar do nome, seus
agentes subordinam-se à autoridade do Poder Executivo) exercer, no
sistema constitucional, função auxiliar. Ora, o órgão incumbido
constitucionalmente de acusar pessoas, e que também pode emitir juízo
para concluir pelo arquivamento de procedimentos apuratórios (incluído o
inquérito policial), está legitimado, pelo sistema constitucional e
pela lógica, a investigar os fatos ilícitos tentados ou consumados.
O referido sistema estabelece uma relação de coordenação entre as
atividades dos agentes da Polícia Judiciária e os órgãos do Ministério
Público. E os representantes ministeriais atuam, na ação penal pública,
em nome e em substituição aos membros da sociedade civil. Por isso gozam
das mesmas prerrogativas de independência conferidas aos membros do
Poder Judiciário.
Com efeito, a Polícia Judiciária, por meio de peça chamada, desde o
Decreto nº 4.824, de 1871, de inquérito policial, pode e deve, na sua
função auxiliar, apurar as infrações penais e contravencionais. Isso, no
entanto, não impede que o Ministério Público também realize
investigações que entender relevantes. E entre procuradores, promotores
de Justiça, delegados e magistrados, como ensinou o saudoso
administrativista francês Gastón Jesse, não existe relação de
subordinação. Em conclusão, o nosso sistema constitucional ficará
subvertido, caso seja dada exclusividade apuratória às polícias
judiciárias: uma “reserva de mercado” às polícias subordinadas ao Poder
Executivo federal e estaduais.
No mundo ocidental, ficou célebre a exitosa Operação Mãos Limpas, que
consistiu em uma investigação realizada pelo MP de Milão e a revelar a
existência de corrupção na política partidária italiana. Indicado pelo
Partido Socialista, o parlamentar Mario Chiesa, administrador do
complexo lombardo Pio Albergo Trivulzio, fazia caixa 2 (tangenti), sem
esquecer de encher o próprio bolso. Em 17 fevereiro de 1972, Chiesa
acabou preso em flagrante e se comprovou, por prova provada, o esquema
criminoso e todos os partidos políticos acabaram extintos. Num misto de
espanto e sinceridade, Chiesa frisou: Tutti rubiamo cosi (todos roubamos
assim).
Fonte: Carta Capital, por Walter Maierovitch
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