Educadora
analisa o papel omisso da família, escola e Estado como causa da
construção de crimes cometidos pelo adolescente que já tinha 15
passagens pela polícia
Fundadora
do projeto onde estudavam crianças mortas na chacina da Candelária, a
educadora Yvonne Bezerra de Mello diz que a história do adolescente
suspeito de matar a facadas um médico na Lagoa Rodrigo de Freitas, no
Rio, mostra como “a família, a escola e o Estado falharam”.
Arquivo pessoal
Yvonne de Mello é fundadora do projeto Uerê, que trabalha há 20 anos com crianças pobres
Jaime Gold, de 57 anos, foi morto quando andava de bicicleta na Lagoa Rodrigo de Freitas, em um caso que chocou o país.
O
principal suspeito do crime, de 16 anos, tem 15 anotações em seu
histórico criminal e já havia sido internado em instituições para
adolescentes pelo menos nove vezes.
Segundo a imprensa local, ele
abandonou a escola em 2013, só viu o pai duas vezes na vida e, aos dez
anos, foi encontrado perambulando pelas ruas do bairro do Leblon à noite
com fome e sem dinheiro para voltar para casa - sua mãe foi notificada
por abandono de incapaz.
Após a última internação, que durou menos
de um mês, no início deste ano - por furto de bicicletas na Zona Sul do
Rio - foi encaminhado para uma instituição onde ficaria em
semi-liberdade, mas acabou fugindo.
Yvonne, fundadora do Projeto Uerê, diz que a história do menino é um "retrato da falência do Brasil."
"Tudo
falhou na vida dele, e é preciso perceber que parte da culpa também é
nossa, é da sociedade", afirma. "A rua embrutece, torna a criança
selvagem, a coloca em contato com a droga e gradualmente banaliza a
violência e a morte”, completa.
Veja os principais trechos da entrevista: Leia também: Morre médico esfaqueado enquanto andava de bicicleta na Lagoa BBC Brasil –
O Rio tem visto uma onda de esfaqueamentos e assaltos, muitos deles
perpetrados por jovens e adolescentes. Quem são esses garotos? É
possível traçar um perfil? Na sua experiência, o que leva um jovem a
cometer crimes como estes? Yvonne Bezerra de Mello -
Estamos falando aqui de filhos de famílias onde invariavelmente falta o
pai ou a mãe, e na minha escola, por exemplo, em 70% dos casos a
ausência é paterna. São crianças criadas por tias, avós, parentes, pelos
irmãos, e por mães negligentes, que muitas vezes consomem drogas, e que
precisam sair para trabalhar, em geral como faxineiras em bairros da
Zona Sul do Rio, o que as deixa praticamente o dia todo fora de casa.
São
crianças que crescem num ambiente de violência constante. Dentro de
casa é comum apanharem, e muito. Fora, há tiroteios e a banalização das
agressões e da morte. Num dado momento, a frequência escolar, que já
tende a ser irregular, vai a zero e elas abandonam a escola por
completo. Aos 11, 12 anos, querem um tênis, uma roupa, ou precisam
ajudar em casa. A maioria começa vendendo bala no trânsito, mas não raro
percebem que roubar é mais rápido e lucrativo, e há também a influência
de aliciadores e dos receptadores de celulares, cordões de ouro e
bicicletas.
Há uma frustração. É pedir e receber não, é ver que o
outro tem e você não. É ficar com migalhas, ser humilhado, violentado.
Um dia essa série de nãos e portas fechadas tem um reflexo, que costuma
ser negativo.
Após crescer com estas características, onde todos
os mecanismos falharam, seja a família, a escola ou o Estado, e a
violência é constante, é comum que na adolescência eles queiram sair de
casa, e se isso se concretizar, com a migração para a rua, a coisa só
piora. Chega o primeiro roubo, o primeiro dinheirinho, e começa um
processo de embrutecimento, de se tornar selvagem. Esse jovem não vai
matar logo de cara. São anos em contato com a violência que aos poucos
viram um ciclo difícil de inverter. Há muita revolta, baixa autoestima,
abandono, frustração. Ele não aguenta mais ficar em casa e acha que a
rua e o crime serão a liberdade, mas é um equívoco. Aos poucos, matar
também pode se tornar algo mais próximo da realidade deles, sobretudo
com a influência da droga. BBC Brasil - A senhora menciona “falhas”. Como a família, a escola e o Estado contribuem para este cenário negativo? Yvonne -
A responsabilidade da família, por mais desestruturada que seja, é
garantir que essa criança esteja indo à escola, e protegê-la da
violência ao menos dentro de casa. O papel da escola é se perguntar por
que esse aluno parou de frequentar as aulas, ir atrás, investigar. O
Estado tem assistentes sociais, que precisavam atuar junto a essas
famílias. E após a primeira internação, o primeiro crime, as
instituições têm a missão de recuperar, de ressocializar essa criança,
esse adolescente.
Se todos esses mecanismos não falhassem, talvez
esse menino não tivesse voltado a roubar, e o ciclo poderia ter sido
interrompido."
Se todos esses mecanismos não falhassem, talvez
esse menino não tivesse voltado a roubar, e o ciclo poderia ter sido
interrompido. Estes atores falharam ao desempenhar seus papéis na
sociedade, falharam ao impedir que algo problemático se agravasse mais
ainda. Leia mais: Assassinato de médico na Lagoa teria ocorrido em troca de turno de policiais BBC Brasil -
Mas desta forma não se está também isentando a responsabilidade do
adolescente, que aos 16 anos tirou a vida de uma pessoa inocente? Yvonne -
Não estou passando a mão na cabeça, em momento algum. Não estou tirando
a culpa do autor desse crime. Essa pessoa precisa ser identificada e
punida, sem dúvida alguma. O que estou dizendo é que essas crianças e
adolescentes são vítimas do sistema, de uma estrutura cruel que o Brasil
tem. Veja o que aconteceu. Horas após o crime, a polícia encontrou uma
casa repleta de bicicletas e facas. Se foi tão fácil encontrar, por que
não fizeram isso antes, desmantelando os receptadores dessas
mercadorias? Alguém sabia e não fez nada. É disso que estou falando. De
omissão, de negligência, das falhas. É fácil penalizar e demonizar os
que estão na rua, os infratores, mas a sociedade fez com que ele fosse
para a rua. Nós também somos culpados. Precisamos sair do marasmo e de
apenas cobrar resultados dos impostos pagos e fazer algo, de fato, para
melhorar a sociedade. BBC Brasil - O adolescente
tinha 15 anotações criminais e ao menos nove internações em instituições
para menores. Como são estes locais? Há possibilidade real de
recuperação e ressocialização? Yvonne - Eu
conheço todas as instituições de internação e recuperação do Rio de
Janeiro. Nenhuma faz o papel que deveria fazer. Tanto os abrigos quanto
as instituições são muito ruins. Não há pedagogia específica, não há
método. Há muito abuso sexual entre os próprios menores, um sodomiza o
outro contra a vontade. Há violência. E é impossível recuperar qualquer
adolescente num local com 1.500, 700, 600 internos. É absurdo achar que
qualquer profissional desenvolverá um trabalho nessas condições. A
verdade é que a criminalidade, o uso de armas de fogo e facas por
crianças e adolescentes está aumentando muito, no país todo, e ninguém
sabe o que fazer. BBC Brasil - Neste cenário, o
debate em torno da redução da maioridade penal tende a ganhar força.
Casos como o da Lagoa tendem a ser usados como argumento pelos dois
lados, tanto por quem é contra como a favor da mudança na lei. Como a
senhora se posiciona?
A resposta não é reduzir a maioridade penal. Onde vamos colocar esses jovens? Nosso sistema carcerário está esgotado, falido. Yvonne -
Mais uma vez, não estou justificando o crime de adolescentes, que
precisa ser punido, mas a questão é como punir, onde punir, como
recuperar. Defendo uma punição maior do que a atual para crimes
hediondos, por exemplo, até porque todo mundo concorda que um garoto de
16 anos sabe muito bem o que faz.
Mas a resposta não é reduzir a
maioridade penal. Temos crianças de dez anos com armas, então se dermos
início, vamos ter que abaixar a maioridade cada vez mais. Mas pense, com
a redução, onde vamos colocar esses jovens? Nosso sistema carcerário
está esgotado, falido. As instituições de menores abarrotadas,
ineficientes. São fábricas de bandidos? Óbvio que sim. BBC Brasil -
Mas então o que a senhora sugeriria, com base em seus 20 anos de
experiência com menores em situação de vulnerabilidade social,
justamente o grupo que tem forte potencial para enveredar pelo mundo da
delinquência juvenil? Yvonne - Punição maior para
adolescentes que cometem crimes hediondos. Instituições menores. Mais
instituições, com número menor de internos, onde se possa de fato fazer
um trabalho real e eficiente. Aí sim podemos começar a ver uma luz no
fim do túnel. É preciso haver acompanhamento educacional, psicológico,
psiquiátrico, tratar violações, abusos, exposição à violência extrema,
revolta e frustração de anos e anos. Precisa acompanhar essas famílias. A
escola precisa ser atuante. Custa dinheiro. Precisa querer investir.
Quem sabe assim possamos evitar que uma criança apreendida por um roubo
venha a assassinar alguém anos depois. BBC Brasil -
O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), disse nesta semana que um
adolescente que mata não revela um “problema social”, e sim um “caso de
polícia”. Como a senhora vê a declaração? Yvonne -
Um absurdo. Totalmente equivocado. É inadmissível que o prefeito de uma
cidade com mais de dois milhões de favelados que vivem diariamente com
uma série de problemas sociais diga uma coisa dessas. É caso de polícia?
Claro que é. Houve uma morte. Precisa haver investigação e punição.
Agora, o que ele fez foi se eximir da culpa de não ter feito o trabalho
social que sabe que deveria fazer, que é sua responsabilidade fazer. BBC Brasil -
Na visão da senhora, o que este caso da Lagoa diz sobre nossa
realidade? Quais são suas perspectivas para o Brasil e o Rio de Janeiro
no que diz respeito à criminalidade entre os jovens e adolescentes? Yvonne -
O que aconteceu é um retrato da absoluta e total falência da nossa
sociedade. A falência do Brasil, da ética, de políticas públicas sérias,
que funcionem. Esse caso e a história do menino suspeito representam
tudo isso. As falhas, a ineficiência, a negligência, a corrupção, a
omissão em se fazer o certo.
O que aconteceu é um retrato da
absoluta e total falência da nossa sociedade. A falência do Brasil, da
ética, de políticas públicas sérias, que funcionem."
Quanto ao
futuro, eu não diria que sou pessimista em geral, até porque senão não
faria o trabalho que faço há mais de 20 anos. Mas sou pessimista quanto
aos rumos que o Brasil está tomando. Precisamos de reformas e de
instituições que cumpram seus papéis. No Rio de Janeiro estamos neste
momento em que tudo está mascarado e maquiado para as Olimpíadas, e só
vai piorar. Vão recolher os mendigos, as crianças de rua, trazer
milhares de militares e policiais, e fazer um espetáculo para o mundo
ver, em segurança. Mas nós sabemos que assim que a festa acabar, tudo
volta a ser como era antes.
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