Copa no Catar: além de escravidão, relatórios da Anistia apontam agressão física e sexual
Reforçando alertas de entidades internacionais, Anistia revela dramática situação de trabalhadores
Na retaguarda das acusações de suposta fraude no processo de eleição para sediar a Copa do Mundo de 2022, definida para o Catar, entidades internacioanais de direitos humanos denunciam a morte de milhares de imigrantes nos canteiros de obras ligados ao Mundial, devido às condições de escravidão a que a classe ainda está exposta. Depois dos alertas, a Anistia Internacional no Brasil vem, há dois anos, documentando as condições destes trabalhadores no país árabe, e lançou na semana passada uma análise mais abrangente e aterrizadora da situação, abarcando outros profissionais afetados pelas violações, incluindo os crimes de agressão física e abuso sexual à mulheres.>> Copa do Catar: mortes de imigrantes e corrupção no foco de entidades de Direitos Humanos
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A assessora de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil, Renata Neder, traça um perfil dos trabalhadores imigrantes, a maior parte deles provenientes do Nepal, Bangladesh, Egito, Índia e Paquistão, que estão chegando ao Catar em busca de novos horizontes abertos em torno do Mundial. Na maioria, são pessoas que atuam na construção civil, mas a entidade também observa o crescimento de outras atividades no contexto de mudanças urbanas e de infraestrutura para receber a comunidade internacional nos jogos. Em todos os casos o quadro relacionado às condições de trabalho é dramático. A classe das domésticas é um destes exemplos. Segundo o relatório da Anistia, há claras evidências de trabalho forçado, envolvendo empresas de diversas nacionalidades, num padrão estabelecido pela Organização Internacional do Trabalho, na convenção em que o Catar é signatário, ou seja, o país assume a responsabilidade quanto a estas questões.
Entre os abusos cometidos pelas empreiteiras, os passaportes são confiscados pelos empregadores e a saída dos trabalhadores só é permitida com a autorização da empresa, além das jornadas excessivas, falta de segurança no ambiente de trabalho. Em 2012, Renata Neder ressalta que a Anistia documentou 1 mil trabalhadores hospitalizados por queda de grandes alturas, o que para ela é uma prova contundente da ausência total de segurança. Durante o socorro destas vítimas, Neder disse que foi constatado outra violação, a restrição ao acesso a um serviço de saúde. Ainda foram registrados no documento a falta de pagamento, com depoimento de trabalhadores que ficaram até nove meses sem receber absolutamente nada, as acomodações precárias e alimentação deficiente.
Neder conta que quando os trabalhadores buscam os seus direitos, sofrem ameaças dos seus encarregados diretos, que usam como trunfo a suspensão dos salários e entrada na Justiça do país com processos criminais contra os imigrantes. Uma das situações mais graves, na avaliação da assessora, está na categoria das empregadas domésticas, o que mereceu um relatório específico da Anistia. Neder diz que estas imigrantes, além de todos os crimes citados, são vítimas de agressão física e abuso sexual.
Dois aspectos distintos na questão das violações nos países sede de mega eventos são destacados por Neder. Primeiramente, ela define que sediar uma Copa do Mundo representa receber muitas obras e no rítmo desta dinâmica, o país aumenta a demanda na área da construção civil, intensificando os abusos já existentes na região, voltados para uma comunidade de imigrantes. "A gente não pode admitir que um mega evento esportivo seja dado como desculpa ou às custas de violação dos direitos humanos. Seja no trabalho forçado, seja nas remoções forçadas", salienta a assessora da Anistia. Neder esclarece que a Anistia espera da Fifa uma postura de exigir destes países sede da Copa providências para acabar com estes tipos de crimes em seus territórios.
Um outro ponto analisado por Neder diz respeito aos valores intrísecos na prática do Esporte, que estão "incompatíveis" com a legislação de países sede do Mundial. "Se avaliarmos os dois próximos países [a receber a Copa], a Rússia (2018) e o Catar (2022), estas nações já possuem históricos de violações dos direitos, onde há tendência de restrição do comprimento de determinados direitos. Na Rússia existe um quadro grave de restrição do direito de expressão, de criminalização da comunidade LGBT e de criminalização dos direitos humanos. O mundial não pode ser usado como uma cortina de fumaça para violação dos direitos, independente dos acontecimentos estarem ou não relacionados com o evento. A gente não pode aceitar o conceito de que sediar este evento cause um desvio de atenção de situações que acontecem naquele país. O contrário, a gente deveria ver que sediar este Mundial deveria ser uma forma do país respeitar os direitos. Por isso que documentamos os casos das trabalhadoras domésticas", avalia Neder.
Um fato que marcou neste período de preparação do Catar para o mega evento, relatado no documento da Anistia, foi a criação da "Carta dos Trabalhadores" pelo Comitê Organizador, reguardando os direitos trabalhistas dos terceirizados nas construções dos estádios, uma iniciativa importante para definir os padrões de atuação nos canteiros de obras. No entanto, uma brecha no documento vem facilitando as ações criminosas. "Esta carta limita os padrões aos estádios, todas as obras relacionadas não estão cobertas e os trabalhadores estão sofrendo abusos livres. As obras para uma Copa não ficam apenas em estádio, elas abarcam toda uma infraestrutura de vias de acesso, transportes com planos complexos de novos modais. Em geral, estas obras são as que têm maior impacto. As remoções, por exemplo, geralmente acontecem em função das obras associadas", explica Renata Neder.
Em meio as tantas denúncias dos trabalhadores, a Anistia acredita que uma mobilização internacional é um caminho legal para pressionar os governos em medidas para garantir os direitos humanos nos canteiros de obras. "Importante ressaltar que a Anistia não está fazendo nenhuma campanha contra o Mundial, mas para que o evento não aconteça às custas de violações. Todos os países deveriam se posicionar quanto a isso. Quando o direito de alguém está sendo violado, os direitos de todos estão sendo também. Este é um princípio da Anistia. No Brasil a gente se importa sim com os direitos dos trabalhadores no Catar", diz Neder.
Partindo deste princípio, a Anistia está chamando à responsabilidade os governos dos países que mais estão representados nos canteiros do Catar, por trabalhadores que estão sendo "escravizados". "Um trabalho que precisa começar é de alerta das embaixadas, levando em consideração que o Catar tem a responsabilidade de país receptor desta mão de obra. Se hoje os países estão cientes através das denúncias feitas, esses países de origem devem ter um trabalho de controle para que o trabalhador não saia para uma situação de exploração. É um outro lado da moeda", comenta.
O futuro dos trabalhadores imigrantes vai depender da posição do governo do Catar, especialmente, da forma que as denúncias serão tratadas - "o quadro pode regularizar ou piorar", estima Neder. Por enquanto, o fluxo de entrada destes terceirizados continua em ritmo acelerado no país. "Eles saem dos seus países de origem acreditando que vão chegar no Catar e encontrar determinada condição de trabalho digno. Mas encontram uma situação de super exploraçao e ainda ficam presos", descreve a assessora de direitos humanos.
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