A ponte entre Brasil e Guiana Francesa que ninguém pode cruzar
Obra milionária teve construção concluída há quatro anos, mas ainda não foi aberta por falta de documentação, pagamentos e desentendimentos entre o governo federal e a França.
03/01/2016 13:52h
Ponte sobre rio Oiapoque foi terminada há quatro anos, mas ainda está fechada (Foto: BBC)
"PARE.
Identifique-se", diz uma placa amarela e preta no extremo brasileiro da
ponte entre a América Latina e a União Europeia - e, se alguém
ultrapassa os limites demarcados pelo arame, um guarda aparece ao longe e
grita: "Volte!".
O grito rompe o
silêncio reinante na imponente obra cinza e vazia sobre o o rio
Oiapoque, cujas águas marcam a fronteira entre o Brasil e a Guiana
Francesa, na selva amazônica.
Ainda
que a ponte estaiada de pilares de concreto de 378 metros de
comprimento tenha sido terminada há quatro anos, nunca foi inaugurada, e
seu uso está proibido.
Essa demora é
um enigma para os moradores dos dois povoados remotos em ambos os lados
do rio: Oiapoque na margem brasileira e St. Georges na francesa.
"Para
qualquer brasileiro e francês é o maior mistério: por quê? Faz anos que
está pronta", diz Alexandra Costa, dona de casa de 34 anos, enquanto
tem as unhas dos pés feitas em um salão de beleza em Oiapoque.
Monumento à ineficiência
A
obra foi anunciada oficialmente em 1997 pelos presidentes da França e
do Brasil à época, Jacques Chirac e Fernando Henrique Cardoso.
Falta de documentos e desentendimentos impedem a ponte de funcionar (Foto: Gerardo Lissardy/ BBC)
"Ouvi
falar da ponte pela primeira vez em 1973", conta Auxilio Cardoso, um
aposentado brasileiro de 71 anos, sobre uma das lanchas que transportam
as pessoas de um lado ao outro do rio.
Ele
está indo a St. Georges "comprar um perfume francês para o Natal" e
passa sob a ponte. Questionado sobre quanto falta para inaugurá-la, dá
de ombros, leva as mãos ao céu e responde sorrindo: "Não sei".
De
fato, ninguém na região parece saber essa resposta. Com um custo para
ambos os governos de US$ 30 milhões (R$ 118,5 milhões), a ponte foi
construída com base na premissa de que impulsionaria o intercâmbio e o
desenvolvimento destes rincões perdidos do Brasil e da França.
A
Guiana Francesa é a última área continental sul-americana que ainda
pertence a uma ex-potência colonial. É um território ultramarino da
França e, como tal, faz parte da União Europeia e tem o euro como moeda
oficial. E a ponte prometia reduzir o isolamento que marca sua história.
Mas,
agora, muitos veem a moderna estrutura como um monumento à ineficiência
governamental, à burocracia e às diferenças entre os dois países.
"É
bonita, mas está parada", reflete Deus Bahia da Silva, um comerciante
de 40 anos, ao observar a ponte a partir da margem brasileira, ao lado
de barcos de pescadores.
"Nosso
Brasil está complicado, os governantes não querem olhar pelo povo, só
por eles mesmos", ele acrescenta. "Oiapoque não tem nada. Nós cassamos
um prefeito, agora temos outro e nada. Nem praça tem aqui: faz anos que
as obras dela estão paradas também."
Vantagens e desvantagens
Entre
os habitantes dos dois povoados, há divergências sobre as vantagens e
prejuízos que a ponte trará, como se fosse uma enorme criatura
adormecida sempre a ponto de despertar.
Oiapoque fica na margem brasileira do rio do qual leva o nome (Foto: BBC)
"Oiapoque
vai ficar cheia de gente", diz Roberto Carlos, de 42 anos, enquanto
joga em uma tenda de tiro ao alvo com pistolas de ar comprimido, como as
de parques de diversão, mas que, na cidade, fica em uma das ruas
principais.
"Vai ser melhor para
fiscalizar, porque agora tem muita mercadoria de contrabando", afirma
Jessica Santos, uma jovem de 23 anos que está desempregada, em frente à
praça de St. Georges.
De um lado,
está a prefeitura do povoado, ao fim de uma esplanada cheia de besouros
mortos. As bandeiras da França e da União Europeia tremulam no ar quente
e úmido. No corredor da entrada, envelhecem fotos de Chirac e Cardoso
do dia em que visitaram St. Georges e anunciaram a obra.
Outros
acreditam que a ponte afastará os turistas, que seguirão em frente rumo
às cidades mais próximas de Caiena, em solo francês, e Macapá, no
brasileiro, sem precisar parar por algumas horas nos povoados, como
fazem agora.
"Não vai ser bom, porque
vai precisar de um carro para cruzar o rio e vai sair mais caro", diz
Marlady da Silva, uma brasileira de 30 anos que vive em Oiapoque e vai
todos os dias para St. Georges de lancha para trabalhar em uma
lanchonete onde se cobra em euros.
Do lado da Guiana Francesa, fica o povoado de St. Georges (Foto: BBC)
Seus
filhos perguntam o que ela vai fazer quando a ponte abrir. O custo da
passagem para atravessar a fronteira em 10 minutos custa R$ 16, e há
umas 200 lanchas que fazem este serviço dia e noite, diz Reginaldo Pena
de Moraes, que, com 57 anos, ganha a vida sobre uma delas.
Ele
conta que seus três filhos o questionam sobre qual será seu trabalho
após a abertura da ponte. "Só vamos descobrir depois que inaugurarem",
ele responde. "Não sabemos quando, mas isso vai acontecer."
Pendências
As
autoridades também não têm certeza sobre os prazos. De seu escritório
em Macapá, Waldez Góes (PDT), governador do Amapá, destaca que a nova
meta para a inauguração é "o final do primeiro semestre de 2016".
Esse
objetivo foi estabelecido durante reunião entre os representantes dos
dois lados em outubro e permitiria abrir a passagem antes dos Jogos
Olímpicos do Rio de Janeiro, que serão realizados em agosto.
Mas,
além do vento contrário gerado pela dura crise econômica do Brasil, que
tem feito com que grandes projetos de infraestrutura sejam esquecidos,
há vários requisitos para conseguir cumprir a data marcada.
Um
é que o Brasil envie antes do fim do ano os documentos que permitam à
França liquidar o último pagamento correspondente à construção da ponte,
que ainda está pendente, explica Góes.
Ele
acrescenta que esse atraso, por sua vez, impede até agora que a empresa
que fez a obra entregue oficialmente a ponte ao Brasil e à França.
Também falta instalar na cabeceira brasileira da ponte os equipamentos
para fazer o controle da fronteira, principalmente aduaneiro, além de
funcionários.
Isso já foi feito do lado francês, mas as cabines de controle neste momento só são habitadas por lagartixas e insetos.
"Depois
que inaugurarem a ponte, será a modernidade", diz com certa ironia um
policial francês de fronteira que evita revelar seu nome, porque não tem
autorização para falar com jornalistas, em um escritório com ar
condionado.
O Brasil também prometeu
pavimentar a BR-156 entre Oiapoque e Macapá, que tem um longo trecho de
terra, barro e buracos em seus 595 km. Mas Góes nega que a obra seja
condição para a abertura da ponte.
O
governador diz que a estrada é de responsabilidade do governo federal e,
diante da suspeita de muitos vizinhos de que a obra atrasou por causa
de corrupção, responde: "Não posso assegurar se houve ou não desvio de
dinheiro."
Visto
Outro
obstáculo pendente é a falta de acordo sobre os seguros para os
veículos que cruzarem a ponte, já que, do lado francês, as exigências e
os custos são bem maiores, porque seguem o padrão europeu.
O
Brasil ainda quer que a França dê fim à exigência de visto para os
brasileiros que entram na Guiana Francesa, onde a polícia controla
rigorosamente a estrada para Caiena, melhor pavimentada do que a
brasileira.
A França quer evitar a
entrada em seu território de imigrantes sem documentos e garimpeiros de
ouro ilegais, mas muitos brasileiros dizem que o tratamento é desigual,
pois os franceses não precisam de visto para entrar no Brasil.
"Os
gringos vêm, fazem o que querem aqui no Brasil e lá não se pode fazer
nada", protesta Ednaldo Ribeiro, taxista de 47 anos em Oiapoque. "Você
chega a St. Georges e logo a polícia já está atrás de você."
Enquanto
isso, a pintura da ponte descasca, a iluminação está deteriorada pela
umidade, e alguns perguntam se a obra estará em condição de ser usada
caso algum dia venha a ser inaugurada.
"Até
os romanos, quando faziam uma ponte, sabiam a razão da construção", diz
Rona Lima, empresário brasileiro de 57 anos, dono de pousada em
Oiapoque. "Mas essa ponte ainda não tem uma finalidade. Não existe
nenhuma economia visível que a justifique."
Para
ele, a obra só serviu para fazer aflorar as diferenças entre os dois
lados do rio. "A ponte veio só para quebrar o charme da região
amazônica."
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