domingo, 5 de junho de 2011

órfãos de pais que ainda estão vivos

Fernanda Bassette - O Estado de S.Paulo
Eles são cerca de 40 mil brasileiros, têm por volta de 50 anos, estão espalhados pelo País e unidos pela mesma dor: são filhos de pessoas que tiveram hanseníase - doença que antigamente recebia o nome de lepra - e foram privados do convívio com os pais ao nascimento.
Esses "órfãos de pais vivos" eram enviados para educandários ou preventórios em cestas chamadas "ninhada de leprosos". Lá cresceram e a maioria nunca conheceu a família biológica. Hoje, lutam por uma indenização do Estado, assim como já ocorre com quem teve a doença e também foi afastado do convívio social. O governo reconheceu que a política de isolamento foi um erro e, desde 2007, paga a essas pessoas uma pensão vitalícia de R$ 750.
O isolamento começou no início da década de 1920, quando a lepra era uma doença endêmica no Brasil. Era contagiosa, mutiladora e incurável. Com o avanço da contaminação, a solução foi isolar os doentes em hospitais ou asilos chamados de leprosários.
"Em 1923, por meio de um decreto, o governo instituiu o isolamento. Foi uma política muito severa e cruel", diz Sueli de Paula Dias, chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência - que vai coordenar o grupo de trabalho que vai tratar da indenização.
No Estado de São Paulo, a internação em massa ocorreu na década de 1930. "Até então, não havia espaço para receber todo mundo. O governo construiu mais quatro asilos e um sanatório", diz a historiadora Yara Nogueira Monteiro, autora de um doutorado sobre o tema.
Com a segregação dos doentes, surgiu outro problema: o que fazer com os seus filhos, que nasciam saudáveis nos hospitais de isolamento?
"As crianças eram enviadas para educandários, onde seriam criadas ou entregues para adoção irregulares, sem que seus pais soubessem ou autorizassem", conta Yara.
Por mais que o isolamento hoje seja visto como cruel, à época foi apoiado pela sociedade, que não reagiu à determinação do governo. "A sociedade não só aceitou como colaborou com isso. As crianças nasceram estigmatizadas, ninguém as queria", diz Yara.
A maioria dos pais perdeu totalmente o vínculo com os filhos. A possibilidade de visita existia, mas elas eram raras - só eram possíveis se o hospital e o educandário autorizassem.
"As mães mandavam cartas para os abrigos em busca de informações ou fotos dos filhos, mas as cartas nunca foram entregues nem respondidas. Muitas nem saíam dos prontuários das mães", conta Yara.
Na década de 1940, foi descoberto o tratamento da doença. O isolamento passou a perder a força em vários países, mas continuou forte no Brasil, onde só terminou quase três décadas depois, em 1967.
Nomenclatura. Até 1970, a doença era conhecida no Brasil como lepra. A partir dessa década, houve uma mudança na nomenclatura para tentar reduzir o estigma da doença. Assim, ela passou a ser denominada hanseníase.
Para Yara, esses 40 mil filhos de pessoas com hanseníase têm razão em buscar uma indenização. "Roubaram a infância e a vida deles", diz.
Segundo Sueli, a minuta de decreto para formar o grupo de trabalho já está escrita e agora tramita entre os ministérios envolvidos na questão da indenização. A expectativa é ter uma resposta definitiva em um ano e meio. Não se sabe ainda se a indenização será paga em uma única parcela ou em forma de pensão mensal.
"A política foi desastrosa, essas pessoas sofreram abusos e maus-tratos. Não é apenas uma questão de reparação, é uma questão histórica. Sem dúvida há uma dívida do Estado com essas pessoas", diz Sueli.
PARA ENTENDER
Há registros desde 1350
Chamada de "a doença mais antiga do mundo", os primeiros registros de hanseníase são de 1350. A moléstia, que ficou conhecida como lepra, causa lesões na pele e compromete os nervos periféricos.
Na idade média, os "leprosos" não podiam entrar em igrejas ou casas e nem mexer objetos sem luva. Também usavam roupa especial e tocavam sinetas para anunciar sua presença.
Na década de 1940 foi introduzido um medicamento eficaz para a hanseníase. Mesmo assim, no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1970, crianças foram tiradas de seus pais com aval do Estado. Só em 1962 um decreto-lei estabeleceu o fim do isolamento dos pacientes e, em 1976, foi extinta a obrigatoriedade da internação em leprosários e o afastamento dos filhos.
Hoje, a cura é simples e gratuita nos postos de saúde. A primeira dose do medicamento mata 90% dos bacilos e a doença deixa de ser transmitida.

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