domingo, 5 de junho de 2011

O túnel de um tempo sem passado

Carlos Melo - O Estado de S.Paulo

Ao excluir da galeria do Senado cenas do pedagógico impeachment de Collor, Sarney fez lembrar '1984', de George Orwell, mas esqueceu que quando se trata da história o que passou aparece

 

A política não tem passado. Pragmática, só sabe olhar para o horizonte. Os interesses políticos superam mágoas, enterram ressentimentos, dedicam-se à articulação do amanhã. Para a política só há futuro. De certo modo, foi o que disse o presidente do Senado, José Sarney, ao retirar as cenas do impeachment de Fernando Collor de Mello da galeria de imagens históricas, o "túnel do tempo" do Senado Federal. Uma decisão de 2011, sobre fatos de 1992, fez lembrar 1984, de George Orwell.
Mas, se no "túnel do tempo" da política o futuro é o que conta, no túnel do tempo da história a história é outra: o passado ensina. No final da década de 80, Sarney era um presidente da República fraco e desgastado, que carregava a frustração da morte de Tancredo. Com o Plano Cruzado, foi breve sua glória: ali, subiu aos céus, mas à mansão dos mortos retornou quando a inflação tomou conta do País. Fragilizado, viu uma miríade de acusações de corrupção decretar seu inferno.
Ninguém melhor que o jovem governador de Alagoas Fernando Collor soube capitalizar sua desgraça e as desconfianças sobre o PMDB, do velho Ulysses Guimarães. Collor era todo ímpeto: no Partido da Juventude, jurou que modernizaria o País, caçaria "marajás", aniquilaria a inflação com um só golpe! Sarney foi seu sparring, seu judas de aleluia favorito. A ele se referiu como "batedor de carteira da história".
Já no PRN, proclamou a juventude: ao contrário de Ulysses, Collor era "a nova geração" que chegaria ao poder; o yuppie que preencheria a cena dos anos 90. Em oposição a Lula, era o empresário de sucesso, economista e jornalista; "intelectual". Presidente, desfilou munido do Dicionário de Política, de Norberto Bobbio. Ninguém carrega um volume daqueles debaixo do braço.
Assumiu a Presidência sem descer do palanque. Pilotou motos superpotentes, fez estripulias com jet ski e não se furtou em comandar um superjato da Força Aérea. Super-herói! George Bush, pai, o chamou de "Indiana Jones brasileiro". Perspicaz, dirigia-se ao povo com um singelo "minha gente" e clamava: "Não me deixem só". Inúmeros foram seus achados de retórica. A popularidade o coroou uma espécie de "imperador"; falava-se, então, em "presidencialismo imperial". É clássica a imagem em que, em cerimônia oficial ao lado do rei da Espanha, traje de gala, ostenta mais medalhas e condecorações que Juan Carlos. A corte toda o servia. Na descida da rampa, o País parava para o ver.
O ímpeto, porém, degenerou em autossuficiência e um governo audacioso e arrogante se estabeleceu: sequestrou economias, enfrentou a indústria, instigou militares, se indispôs com artistas, investiu contra a mídia - nos bastidores, seus agentes edificavam um império de comunicação. Sobranceiro, ignorou o Congresso Nacional. Subestimou a sagacidade das raposas. O resto se conhece.
Liderança política requer prudência e Collor, no entanto, foi temerário: abriu várias e simultâneas frentes de conflito. Se viu em apuros quando lhe faltaram dotes políticos mais elevados que o marketing. Até buscou a grife dos tucanos, é verdade, mas era tarde. Para seu fim, foi invadido por um dos flancos, o da moralidade que ele mesmo empunhara. O povo, que infelizmente tolera certa leniência moral, detesta o farisaísmo. Inapelavelmente, o deixou só.
Foi abatido pelo sistema político, pelo establishment e por parcela da sociedade que, na verdade, nunca conquistara. Pela primeira vez na história, as CPIs foram ao ar, ao vivo. Minisséries e âncoras de TV mobilizaram a garotada. Roseana, a filha do humilhado Sarney, foi musa do impeachment e seu pai, mais tarde, diria: "Derrubamos Collor"! De cabeça erguida e passo firme, o intrépido presidente retirou-se, de volta à Casa da Dinda, como na peça de Shakespeare, "cheio de som e fúria, significando nada".
O túnel do tempo da história ensina ou deveria ensinar: autossuficiência e popularidade significam nada. A sabedoria consiste em comprar uma briga de cada vez; compor quando não se pode enfrentar; engolir os sapos inevitáveis e, é claro, articular avanços; ser mais sagaz que as raposas: ter projeto, despertar esperança; demonstrar resultados. A todo custo, impedir que a inflação reapareça, fazer com que o País cresça. E sempre resguardar o flanco da moralidade. Mesmo ao preço de lançar companheiros ao mar.
Sarney teria razão se dissesse que foi o sucesso de Collor que de nada serviu: "Foi um acidente; não deveria ter acontecido". Mas, ao contrário, seu impeachment foi, este sim, pedagógico. Mais que imagens, serve de alerta. Se hoje a imponente presença do senador alagoano inibe funcionários e isso faz com que o presidente do Congresso mande retirar das galerias fotos que o constrangem, então que sejam enviadas ao Palácio do Planalto. Que lá, no túnel do tempo para sempre, sirvam de aviso.

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